Público - 2 Mar 03
Não Há-de Ser Nada!
Por ANTÓNIO BARRETO
Desde 1984 e até, pelo menos, 1989, Portugal vendia armas ao Iraque. Dizem
alguns jornais que continuou a vender depois dessa data, mas não há confirmação.
O primeiro- ministro garantiu que Portugal vende armamentos a qualquer país,
desde que tal não seja proibido pelas Nações Unidas, sem olhar à natureza dos
regimes políticos dos compradores. Qual é o mal?
Os processos ditos de pedofilia continuam a ocupar as primeiras páginas e os
boletins de notícias da rádio e da televisão. Além de entreterem escritórios,
cafés, restaurantes e "soirées" de família. As detenções iniciais foram feitas
de modo a levantar sérios problemas de método e de salvaguarda de direitos. A
interpretação que muitos fazem do segredo de justiça deixa a desejar e pode pôr
em crise tanto os direitos individuais como as garantias de justiça imparcial.
Na rua, manipulam-se as emoções e tenta-se organizar um julgamento pelos
sentimentos, que resulta num episódio lamentável. À medida que se vão revelando
factos e antecedentes, vai-se descobrindo o que parece ser uma gigantesca
operação de encobrimento, alimentada de complacência de muitos e de cumplicidade
dos poderes públicos. Entretanto, é anunciado que não menos de 120 crianças da
Casa Pia são actualmente vítimas de abuso sexual de vária ordem. E surgem
relatórios com dez, 15 e 20 anos que, em seu tempo, alertavam, sem qualquer
efeito útil, para as situações então investigadas e que não cessaram. Tudo bem.
De repente, o alarme na imprensa. Há, no mercado, galináceos perigosos. Uns
estarão doentes. Outros terão tomado medicamentos, aliás proibidos, que poderão
ter efeitos graves na saúde humana. Haverá já cerca de 50 empresas fechadas
pelas autoridades. Mas não se sabe que empresas são. Há animais no mercado, mas
o consumidor não tem o direito de saber quais são as proveniências. Há meses que
eram conhecidos, em certos círculos administrativos e técnicos, relatórios
alertando para a situação. Representantes das autoridades sanitárias aparecem
publicamente e garantem que estão a estudar. Não revelam os nomes das empresas
em causa e acrescentam, com ar sabido, que "nada é seguro na vida". Não é grave.
Após mais de 15 anos de crise, a Casa do Douro continua a oscilar entre a
ruptura de pagamentos, a falência, a ameaça de extinção, a penhora ou a
inundação do mercado com vendas exageradas destinadas a pagar as dívidas. Mas
não há razões para alarme.
A Polis integra o Estado, a Expo e cerca de dez cidades, tudo reunido em outras
tantas sociedades, com o objectivo de revalorizar, requalificar e ordenar os
centros urbanos. É um dos mais vastos programas de centralização dos poderes
públicos e constitui um dos mais vultuosos agrupamentos de parceiros económicos,
de empresas de construção, de gabinetes de engenharia e de arquitectura, tudo à
mistura com inegáveis influências políticas e consideráveis interesses. A Polis
encontra-se em situação financeira difícil. O ministro Isaltino acusa o PS e o
Governo anterior de terem criado um buraco de mais de 250 milhões. Mas tudo vai
prosseguir. Embora com moderação, acrescenta o ministro. Não há crise.
O perdão fiscal foi um êxito. Muitos milhões de contos entraram nos cofres. Os
que recorreram a esse perdão estavam convencidos de que não só não pagavam
juros, como também seriam amnistiados ou perdoados quanto ao crime fiscal em si.
Era essa a expectativa, que o Governo não tinha, aliás, prometido nem afastado.
Agora sabe-se que o processo judicial continua válido e os contribuintes vão ser
julgados e eventualmente condenados. Não sei se o Governo agiu de má-fé, mas sei
que explorou a boa-fé do contribuinte. Manuela Ferreira Leite diz que não quer
saber desse aspecto do problema, até porque o "dinheiro já cá canta". Acontece.
Os jornais vêm escrevendo sobre um estranho assunto: parece que alguns
directores e administradores da TAP recebiam, de entidades suíças interessadas
na compra da companhia, suplementos significativos aos seus
vencimentos. Consta também que, quando a Swissair faliu, esses vencimentos
passaram, por via de uns despachos secretos, ou pelo menos discretos, a ser
pagos pelo Governo português. Não faz mal.
Continuam a fechar empresas internacionais, sobretudo no têxtil e no calçado,
que vieram para Portugal com ajudas da Europa e que agora se preparam para ir
para a Europa de Leste com a ajuda da Europa. É a vida.
Já se percebeu que o Presidente da República e o primeiro-ministro, para não
dizer todo o Governo, não estão de acordo quanto às questões do Iraque, da
guerra, da campanha antiterrorismo liderada pelos americanos, das relações entre
a União Europeia e os Estados Unidos, do papel das Nações Unidas e da NATO e da
posição de Portugal relativamente a todos estes problemas. Aquando da reunião do
Conselho de Estado (que é um órgão de consulta e não de decisão colegial)
soube-se que os dois principais titulares fariam esforços para manter a unidade,
"apesar das divergências", frase totalmente inútil e contraproducente. Depois
disso, o primeiro-ministro assinou o "manifesto dos oito", ao qual aderiram mais
dez. Ambos, Presidente da República e primeiro-ministro, concordaram em ceder os
corredores aéreos e a base das Lajes aos americanos. Mas, entretanto, o
Presidente da República fez um rasgado elogio à política europeia do Presidente
Chirac, que desprezou os candidatos à adesão e condenou os membros que não
estavam de acordo com ele. Assim é que uma esmagadora maioria de três países
representa a unidade europeia, contra a minoria de quase 20 países claramente
divisionistas que põem em perigo a coesão. Não há-de ser nada.
Desde 1984 e até, pelo menos, 1989, Portugal vendia armas ao Iraque. Dizem
alguns jornais que continuou a vender depois dessa data, mas não há confirmação.
O primeiro- ministro garantiu que Portugal vende armamentos a qualquer país,
desde que tal não seja proibido pelas Nações Unidas, sem olhar à natureza dos
regimes políticos dos compradores. Qual é o mal?
Bernardino Soares duvida que a Coreia do Norte não seja uma democracia. Mário
Soares duvida que os Estados Unidos sejam uma democracia. Não é grave.

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