Diário de Notícias - 3 Mar 03
Jogo de azar
João César das Neves
Portugal tem nesta altura muito que o preocupe. Apesar disso, é incrível como um
enredo saído das Farpas, com personagens tiradas do Álbum das Glórias, passa
quase despercebido no início do século XXI. Que, no meio da apatia geral, seja
tacitamente aceite um negócio de milhões, enganador para o cidadão,
desprestigiante para o País e manipulador do público é digno d'O Conde
d'Abranhos.
O projectado casino no Parque Mayer é justificado pelo dinheiro que vai trazer
para a cultura. Por isso recebeu o apoio entusiástico de muitos artistas, ídolos
dos espectadores e, deste modo, a aceitação do público. Mas de onde vem esse
dinheiro todo? Dado que um casino não produz nada, como pode ser tão rentável? A
resposta é simples: indo ao bolso dos cidadãos.
Ninguém entra num casino senão com o objectivo de sair de lá mais rico. Se no
final a casa dá bom lucro, isso só pode ser conseguido pela frustração de
multidões. Um casino é a suprema especulação, o triturador de ilusões, o
paroxismo do furto autopromovido. A tentação é o seu instrumento e o engano é o
método de operação. Como pode uma coisas dessas ser promotora da cultura?
Mas o pensamento politicamente correcto é incapaz de entender o problema. A
ideologia relativista impõe que tudo o que se passa entre adultos que consentem
tem de ser respeitado. Não entende que a sedução tira tanto a liberdade quanto a
opressão, só que à traição. Por isso está disposta a aceitar as maiores
barbaridades sem pestanejar, desde que as vítimas concordem. O caso do jogo é um
dos mais evidentes. Não interessa a angústia impotente dos viciados, a
destruição de projectos e vidas, as lágrimas de familiares arruinados. Aqui os
capitalistas podem engordar sem críticas à custa da miséria alheia. As receitas
do casino vêm todas de cidadãos aliciados, hipnotizados, embrulhados. Mas só uma
pequena parte desse dinheiro chegará, de facto, à cultura. O empresário da sala
exige, certamente, largos lucros. Os políticos que a promovem esperam, sem
dúvida, financiamento para voos eleitorais. Não é no palco, na galeria ou na
editora
que essas verbas vão ser gastas. A esmagadora maioria do dinheiro que os
portugueses vão deixar no casino irá, pois, para usos bem mais prosaicos que os
anunciados. Se a câmara municipal organizasse uma equipa de carteiristas a
trabalhar no metro era capaz de angariar bastante mais dinheiro para a cultura
com bastante menos frustração. Além disso, como podem os artistas pensar que as
suas salas vão ficar cheias com uma banca de jogo ao lado? O que a cultura, o
espectáculo precisam em Portugal não é, antes de mais, de dinheiro mas de
espectadores. Um casino no centro de Lisboa só pode contribuir para reduzir as
audiências.
Não se fala da imagem decadente e saloia que dá a batota no centro de uma
capital europeia. Não se refere o incentivo à corrupção, à exploração, à usura,
ao crime que ela vai trazer. Em todo o mundo civilizado, o jogo a dinheiro só é
permitido com muitas cautelas e limites, em locais resguardados e afastados. Em
Portugal temos o ridículo de ver políticos basearem nele o seu programa
eleitoral.
O jogo é um vício perigoso. Mas a cultura moderna, aqui como noutros temas,
prefere ignorar o óbvio para se mostrar desinibida. Quem apontar a nudez do rei
sujeita-se à suprema injúria de ser «conservador», o argumento de quem não
consegue argumentar.

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