Público - 23 Mar 03
Da Minha Gaveta, em Defesa da Adopção
Por TERESA MORAIS
A comoção provocada pelos abusos sexuais sobre crianças agora conhecidos e com
uma dimensão ainda insondável colocou o país em turbulência e os nossos
espíritos em absoluta perplexidade. Abalados, quase emudecidos uns, revoltados e
imparáveis outros, todos nos indignamos pelas culpas alheias e pela nossa
própria parcela de responsabilidade, que assumimos, quanto mais não seja, por
não termos tido a capacidade de suspeitar, de duvidar, de interpretar os sinais.
A questão está longe do seu termo que constituirá, não se duvida, um teste ao
sistema judicial que temos, se não mesmo um teste à nossa memória colectiva e à
correlativa capacidade de resistirmos ao desgaste mediático das questões que
verdadeiramente relevam. Todavia, não é cedo para pensarmos em prevenção e
porventura, para muitas crianças institucionalizadas, é já tarde para as
conduzir a uma solução de crescimento saudável, afectivamente inteiro, que
ultrapasse o limite mínimo de felicidade institucionalmente produzido.
No contexto em que estamos a viver é difícil ser-se optimista. Hostilizamos
mesmo o optimismo, como se de realidade próxima da irresponsabilidade se
tratasse.
Quando pensamos nos tais depósitos de crianças, modelo estafado, de soluções
menores para a vida das crianças, é como se descobríssemos, repentinamente,
nesta expressão, a síntese que cada um de nós procurava na sua própria cabeça
para explicar tudo o que nos está a acontecer. São crianças que em muitos casos,
não esperam por um colo, nem por uma família, esperam que o tempo as conduza a
outra instituição, onde uma outra fase da vida as "libertará", em muitos casos,
para as ruas.
Acontece, no entanto, que pelas crianças, não podemos ser outra coisa senão
optimistas. Não temos alternativa!
É forçoso, averiguar, inquirir, compreender, concluir e agir sobre tudo o que já
sabemos e tudo o resto que exista para saber a propósito das instituições,
públicas ou privadas, que acolhem as nossas crianças. Impõe-se-nos ainda
descobrir, ou talvez apenas imitar, outro modelo, com provas dadas, que
certamente configurará estas instituições como lugares de passagem, se possível
breve e feliz, a caminho de um projecto de vida verdadeiramente alternativo à
família biológica que não existe ou não tem condição de existir como família de
afecto: a adopção.
Mais de quinze mil crianças "acumuladas" em instituições é um número impossível
de explicar sem pensar em ineficácia de muita gente no interior do sistema
actual; que muita outra gente, zelosa, não consegue superar. E
assim, o que vence é o desalento de quem, candidato à adopção de uma criança,
espera anos, num processo de burocracia arrastada a que só alguns resistem,
absolutamente desmotivador de muitos candidatos, cansados só de anteverem o
desgaste a que se ofereceriam! Por tudo isto o anúncio pelo primeiro-ministro de
uma nova Lei da Adopção foi, consensualmente, recebido como uma boa notícia.
Não que fosse impossível melhorar o processo com a lei vigente: bastaria que a
avaliação dos candidatos a adoptantes se fizesse dentro do prazo previsto para
encurtar em muitos meses os tempos de espera.
Mas, a verdade é que existem bloqueios e "vícios" inultrapassáveis sem uma
alteração legislativa, servindo-nos de exemplo a questão da idade limite para
adoptar, hoje excessivamente baixa, considerada a esperança média de vida. Além
disso, só a criação de uma Rede Nacional da Adopção onde se centralizem os dados
relativos às crianças susceptíveis de serem adoptadas e aos candidatos, sejam
eles casais ou famílias monoparentais, já justificaria essa alteração.
Exige-se uma lei audaciosa, inovadora, que coloque o critério do interesse da
criança acima de qualquer outro, envolvida em medidas extralegais e aplicada por
mentes arejadas.
"Não devemos pedir à instituição que se substitua à família", afirma a
procuradora Dulce Rocha, incansável na defesa dos direitos das crianças, que em
cada caso de violência, maus tratos ou abandono, tem uma criança concreta, com
nome, a pedir-lhe uma solução de vida. Ainda há poucos dias me falava da
situação de um menino, chamemos-lhe José. Foi abandonado pela mãe aos dois anos
de idade, viveu numa instituição, acabou por conseguir uma família de
acolhimento que o tratava como filho mas que não o conseguiu adoptar. A mãe
nunca consentiu e nunca o assumiu. Hoje o José tem onze anos, sofre de graves
perturbações emocionais e continua a viver numa instituição.
"O Estado não tem vocação emocional", diz Luís Villas Boas. Sabe bem do que
fala! Mas é bem verdade que, em contrapartida, o Estado tem o poder para
intervir de todas as formas idóneas à defesa das crianças. É o que dele se
espera. Talvez seja o momento de ouvirmos, sabendo escutar, estas e outras vozes
entendidas, em que a experiência de gabinete é suplantada pela marca pedagógica
das vidas que lhes passam pelas mãos.
Deputada do PSD

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