Senhoras e senhores, respeitável público, liguem
a televisão e verão algo nunca visto
Helena Matos
Há largo tempo que a figura de primeiro-ministro foi
substituída pela de performer de ilusionismo
Pela primeira vez diante dos vossos respeitáveis
olhos, um governo que conduziu um país à falência e
que teve de negociar in extremis um acordo para
pagar salários e juros aos credores apresentou-se
como vencedor perante o povo.
A comunicação ao país de José Sócrates na
terça-feira à noite foi um número de ilusionismo em
que nem sequer faltou o mistério da proibição da
tomada de fotografias por parte de fotógrafos
alheios ao gabinete do primeiro-ministro e o
suspense de um ministro das Finanças esfíngico como
se fosse partenaire no número das facas.
Como convém aos espectáculos de magia, no fim
ouviu-se dizer que tinha corrido bem, entendendo-se
aqui o bem no sentido da prestidigitação. Ou seja,
sabe-se que se foi enganado, até gozado (a propósito
de gozo, quem além do nosso primeiro-ministro fala
de privatização da escola pública?) mas a cada
actuação do artista em questão - há largo tempo que
a figura de primeiro-ministro foi substituída pela
de performer de ilusionismo - acaba sempre a
tornar-se consensual que o número correu bem pois
ninguém percebeu para onde foram as pombas, nem os
coelhos, nem a mulher, nem as cartas, adereços que
nas prestações deste nosso artista entrincheirado em
S. Bento não são pombas, nem coelhos, nem mulher,
nem cartas que desaparecem mas sim buracos
orçamentais, número de desempregados, dados sobre a
segurança interna, resultados efectivos da
frequência das Novas Oportunidades e da distribuição
de computadores Magalhães ou o balanço das operações
de compra e venda do património estatal à Estamo.
Esta relação entre o ilusionista e o seu público
tornou-se de tal modo indispensável ao nosso
quotidiano que mal o espectáculo terminara já
Francisco Assis avisava que era preciso não entrar
em euforia. Qualquer criatura que não estivesse
imbuída deste clima de show mágico perguntaria
imediatamente onde é que pode haver euforia num país
que pediu 78 mil milhões de euros, que tem impostos
altos e vai aumentá-los mais ainda, que tem a maior
dívida externa dos últimos 120 anos e que regista um
desemprego-record. Mas nós já perdemos a noção do
real. O que nos interessa é a eficácia da encenação.
No seu blogue, Henrique Raposo comparava há dias os
comentários gerados por duas notícias surgidas quase
em simultâneo. Uma delas dava conta da letra do hino
do PSD para esta campanha, a outra relatava que 600
mil crianças tinham perdido o abono de família. Como
é mais ou menos esperado, a vírgula mal colocada no
hino do PSD gerou uma catadupa de comentários e
afectou a imagem de Passos Coelho enquanto líder.
Pelo contrário, as 600 mil crianças que perderam o
abono não suscitaram grande interesse e de modo
algum beliscaram a imagem sempre vitoriosa de José
Sócrates. Conclui Henrique Raposo: "Aproveitar o
ruído do PSD para esconder o fracasso absoluto da
governação PS é uma coisa inaceitável." Mas só seria
inaceitável no plano da racionalidade. Ora nós
estamos no meio de uma coisa delirante que dá pelo
nome de "Admirável show de José Sócrates, o
ilusionista que nunca falha".
Entre 2009 e 2011 este "maior espectáculo do mundo
do admirável show de José Sócrates, o ilusionista
que nunca falha" passou do ambiente feérico das
grandes tendas de eventos cheias de comboios de alta
velocidade e aumentos à função pública para umas
aparições constrangedoras que recordam precisamente
aqueles circos pobres que deambulavam pelo país, sem
leões nem elefantes, sem trapezistas nem bailarinas.
Apenas umas famílias, umas pombas, uns cães e às
vezes um burro. Mas continuavam a anunciar-se como o
maior espectáculo do mundo. E o povo continuava a
correr para assistir e bater palmas. E continua até
porque no "Admirável show de José Sócrates, o
ilusionista que nunca falha" cada um dos dez milhões
de portugueses tem uma participação prevista, quanto
mais não seja como partenaire contribuinte.