É difícil exagerar a importância e o alcance do seu
pontificado, para católicos e não católicos, crentes
e não crentes
A beatificação de João Paulo II voltou a trazer à
praça pública a memória do extraordinário Papa
polaco. É difícil exagerar a importância e o alcance
do seu pontificado, para católicos e não católicos,
crentes e não crentes.
No plano político, todos reconhecem o papel decisivo
de Karol Wojtyla no colapso final e pacífico do
império soviético. Seria, por si só, uma realização
de enorme magnitude. Mas, ao contribuir
decisivamente para a desacreditação do regime
soviético, o Papa polaco fez ainda mais. Restaurou o
ideal de uma sociedade livre e do papel
incontornável da liberdade religiosa - e não apenas
da liberdade dos católicos - numa sociedade livre.
Karol Wojtyla podia ter defendido os direitos dos
católicos polacos em nome do facto incontornável de
que a Polónia era há muitos séculos uma nação de
esmagadora maioria católica. Mas não foi exactamente
isso que ele fez. Ele defendeu os direitos dos
católicos polacos em nome da liberdade de
consciência de todos, católicos e não católicos,
crentes e não crentes.
Na linha do que fora consagrado pelo Concílio
Vaticano II, João Paulo II defendeu a liberdade de
consciência como expressão essencial da dignidade da
pessoa humana. E apresentou a dignidade da pessoa
humana como parte integrante da verdade revelada que
o cristianismo convida o mundo a descobrir. Por
outras palavras, João Paulo II fundou a liberdade na
verdade, não na ausência dela, ou na equivalência
relativista entre as verdades de cada um.
Ao fundar a liberdade na verdade da mensagem cristã
acerca da dignidade da pessoa humana e da sua
consciência, João Paulo II integrou a defesa da
liberdade dos católicos na defesa da liberdade da
consciência de todos. E reafirmou que uma sociedade
livre é aquela em que a lei protege a liberdade das
pessoas e limita o poder político, obrigando-o a
respeitar essa liberdade.
Desta forma, João Paulo II refutou também as dúvidas
ainda existentes entre alguns sectores católicos
acerca da existência de um alegado "terceiro regime"
entre o regime comunista e o impropriamente chamado
"regime capitalista". Só há dois tipos de regimes:
não livre e livre. Num regime livre, a liberdade da
pessoa está no centro e abrange todas as dimensões:
religiosa, cultural, política e económica. Não há
por isso regimes livres sem empresa livre, ou com
liberdade económica condicionada pelo capricho dos
governantes. E não há ambiguidade sobre a posição
dos católicos acerca desses dois regimes: eles são a
favor dos regimes livres.
No interior de um regime livre, fundado nos direitos
fundamentais da pessoa humana, existe uma permanente
controvérsia em torno de diferentes propostas
políticas, económicas, culturais. João Paulo II
reafirmou que a Igreja não defende nenhum projecto
político particular no interior de uma sociedade
livre. A sua esfera não é política. Mas a mensagem
religiosa da Igreja tem uma dimensão cultural
pública que pode ser relevante para a saúde e
robustez das sociedades livres.
Essa mensagem pode ser traduzida na ideia de que as
virtudes morais são essenciais para a sustentação da
liberdade. Sem autocontrolo, sem capacidade de
diferir a gratificação, sem atenção à sorte do
outro, a liberdade é ameaçada pela desconfiança
mútua, pela indiferença, pela crueldade. A prazo, a
anomia, ou ausência de regras de conduta cívica
partilhadas, dará lugar à insegurança colectiva e
esta à descrença na liberdade.
Em minha opinião, João Paulo II tornou acessível aos
olhos do mundo a mensagem fundamental com que o
cristianismo contribuiu decisivamente para a gradual
emergência da civilização ocidental. A força não é o
direito: a diferença entre o bem e o mal, o certo e
o errado, a justiça e a injustiça não dependem dos
caprichos dos poderes de plantão. Todo o poder deve
ser limitado pela lei e pela moral. No centro dessa
limitação de todos os poderes deve estar o respeito
pela dignidade da pessoa, cujo núcleo é constituído
pelo direito à vida e à liberdade.
Director do Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra
European Parliament/Bronislaw Geremek in European
Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin,
Varsóvia