Todos sentem que o ano foi em grande parte perdido.
Pior: todos sabem que a escola está, hoje, pior do
que há um ano
A publicação, pelo Ministério da Educação, do Manual
de Aplicadores não passou despercebida. Vários
comentadores se referiram já a essa tão insigne peça
de gestão escolar e de fino sentido pedagógico.
Trata-se de um compêndio de regras que os
professores devem aplicar nas salas onde se
desenrolam as provas de aferição de Português e
Matemática. Mais precisos e pormenorizados do que o
manual de instruções de uma máquina de lavar a
roupa. Mais rígidos do que o regimento de disciplina
militar, estes manuais não são novidade. Podem
consultar-se os dos últimos quatro anos. São
essencialmente iguais e revelam a mesma paranóia
controladora: a pretensão de regulamentar
minuciosamente o que se diz e faz na sala durante as
provas.
Alguns exemplos denotam a qualidade deste manual:
"Não procure decorar as instruções ou
interpretá-las, mas antes lê-las exactamente como
lhe são apresentadas ao longo deste manual."
"Continue a leitura em voz alta: Passo agora a ler
os cuidados a terem ao longo da prova. (...) Estou a
ser claro(a)? Querem fazer alguma pergunta?" "Leia
em voz alta: Agora vou distribuir as provas. Deixem
as provas com as capas para baixo, até que eu diga
que as voltem." "Leia em voz alta: A primeira parte
da prova termina quando encontrarem uma página a
dizer PÁRA AQUI! Quando chegarem a esta página, não
podem voltar a folha; durante a segunda parte, não
podem responder a perguntas a que não responderam na
primeira parte. Querem perguntar alguma coisa? Fui
claro(a)?" Além destas preciosas recomendações, há
dezenas de observações repetidas sobre os
apara-lápis, as canetas, o papel de rascunho, as
janelas e as portas da sala. Tal como um GPS ("Saia
na saída"), o manual do aplicador não se esquece de
recomendar ao professor que leia em voz alta:
"Escrevam o vosso nome no espaço dedicado ao nome."
Finalmente: "Mande sair os alunos, lendo em voz
alta: Podem sair. Obrigado(a) pela vossa
colaboração"!
A leitura destes manuais não deixa espaço para
muitas conclusões. Talvez só duas. A primeira: os
professores são atrasados mentais e incompetentes.
Por isso deve o esclarecido ministério prever todos
os passos, escrever o guião do que se diz, reduzir a
zero quaisquer iniciativas dos professores,
normalizar os procedimentos e evitar que
profissionais tão incapazes tenham ideias. A
segunda: a linha geral do ministério, a sua política
e a sua estratégia estão inteiras e explícitas
nestes manuais. Trata os professores como se fossem
imaturos e aldrabões. Pretende reduzi-los a agentes
automáticos. Não admite a autonomia. Abomina a
iniciativa e a responsabilidade. Cria um clima de
suspeição. Obriga os professores a comportarem-se
como robôs.
A ser verdadeira a primeira hipótese, não se percebe
por que razão aquelas pessoas são professores.
Deveriam exercer outras profissões. Mesmo com cinco,
dez ou 20 anos de experiência, estes professores são
pessoas de baixa moral, de reduzidas capacidades
intelectuais e de nula aptidão profissional. O
ministério, que os contratou, é responsável por uma
selecção desastrada. Não tem desculpa.
Se a segunda for verdade, o ministério revela a sua
real natureza. Tem uma concepção centralizadora e
dirigista da educação e da sociedade. Entende sem
hesitação gerir directamente milhares de escolas.
Considera os professores imbecis e simulados.
Pretende que os professores sejam funcionários
obedientes e destituídos de personalidade. Está
disposto a tudo para estabelecer uma norma
burocrática, mais ou menos "taylorista", mais ou
menos militarizada, que dite os comportamentos dos
docentes.
Oano lectivo chega ao fim.
Ouvem-se gritos e suspiros. Do lado, do ministério,
festeja-se a "vitória". Parece que, segundo Walter
Lemos, 75 por cento dos professores cumpriram as
directivas sobre a avaliação. Outras fontes oficiais
dizem que foram 57. Ainda pelas bandas da 5 de
Outubro, comemora-se o grande "êxito": as notas em
Matemática e Português nunca foram tão boas. Do lado
dos professores, celebra-se também a "vitória".
Nunca se viram manifestações tão grandes. Nunca a
mobilização dos professores foi tão impressionante
como este ano. Cá fora, na vida e na sociedade,
perguntamo-nos: "vitória" de quem? Sobre quê? Contra
quem? Esta ideia de que a educação está em guerra e
há lugar para vitórias entristece e desmoraliza.
Chegou-se a um ponto em que já quase não interessa
saber quem tem razão. Todos têm uma parte e todos
têm falta de alguma. A situação criada é a de um
desastre ecológico. Serão precisos anos ou décadas
para reparar os estragos. Só uma nova geração poderá
sentir-se em paz consigo, com os outros e com as
escolas.
Olhemos para as imagens na televisão e nos jornais.
Visitemos algumas escolas. Ouçamos os professores.
Conversemos com os pais. Falemos com os estudantes.
Toda a gente está cansada. A ministra e os
dirigentes do ministério também. Os responsáveis
governamentais já só têm uma ideia em mente:
persistir, mesmo que seja no erro, e esperar
sofridamente pelas eleições. Os professores procuram
soluções para a desmoralização. Uns pedem a reforma
ou tentam mudar de profissão. Outros solicitam
transferência para novas escolas, na esperança de
que uma mudança qualquer engane a angústia. Há
muitos professores para quem o início de um dia de
aulas é um momento de pura ansiedade. Foram milhares
de horas perdidas em reuniões. Quilómetros de
caminho para as manifestações. Dias passados a
preencher formulários absurdos. Foram semanas
ocupadas a ler directivas e despachos redigidos por
déspotas loucos. Pais inquietos, mas sem meios de
intervenção, lêem todos os dias notícias sobre as
escolas transformadas em terrenos de batalha. Há
alunos que ameaçam ou agridem os professores. E há
docentes que batem em alunos. Como existem
estudantes que gravam ou fotografam as aulas para
poderem denunciar o que lá se passa. O ministério
fez tudo o que podia para virar a opinião pública
contra os professores. Os administradores regionais
de Educação não distinguem as suas funções das dos
informadores. As autarquias deixaram de se preocupar
com as escolas dos seus munícipes porque são
impotentes: não sabem e não têm meios. Todos estão
exaustos. Todos sentem que o ano foi em grande parte
perdido. Pior: todos sabem que a escola está, hoje,
pior do que há um ano.