Uma justa sentença que furou os abusos da praxe Nuno Pacheco
Praxes violentas ou degradantes há muitas, assim
como haverá outras quase inofensivas. Mas a sentença
de ontem é clara: chegou ao fim a benevolência
perante os abusos da praxe
Demorou quase seis anos, mas a sentença ontem
proferida no célebre caso de uma praxe violenta na
Escola Superior Agrária de Santarém é, no essencial
(que não são as multas, cujo montante é discutível),
uma peça exemplar. E é um sinal de que acabou o
tempo da benevolência para com os inúmeros abusos
cometidos em nome da tradição. Um ritual integrador,
dizem os defensores da praxe, argumentando que ele
existe noutras esferas, juvenis ou adultas, públicas
ou secretas. Mas será possível chamar ritual de
integração a um festival de boçalidade e humilhação?
Como imaginaram estes estudantes agrários que
esfregar uma caloira com esterco, obrigando-a a
secar ao sol e depois a simular um acto sexual,
ajudaria a "integrá-la" no grupo? Como acham que
alguém que é obrigado a enfiar a cabeça num bacio de
excrementos aceita tal manifestação de boas-vindas?
Não acham, porque nunca acham nada, a não ser que
empregam mais engenho e tempo nessa actividade
imbecil do que naquilo que deveria, na verdade,
formar nas escolas espírito de grupo e de pertença.
E o sentimento de impunidade por esses excessos é
tal que, sintomaticamente, a advogada dos praxadores
(que vai, naturalmente, recorrer da sentença)
declarou ontem que não contava com a condenação. É
verdade. Nem ela nem provavelmente o país, habituado
a achar tais coisas insignificantes. Brincadeiras.
Pois é altura de mostrar os limites de tais actos e
declarar que há coisas que não são "da praxe" e sim
do foro da justiça. Os actos dos seis jovens agora
condenados, tardiamente, por algo que aconteceu em
2002, "ultrapassaram", segundo o juiz, "os limites
impostos pela noção de praxe" e foram para "além do
mínimo ético socialmente tolerável". Daí a
condenação de seis dos envolvidos a multas que
oscilam entre os 640 e os 1600 euros e de um sétimo,
veterano da escola, por crime de coacção, com multa
de 1400 euros.
Para quem se recorda do tristemente célebre caso do
telemóvel que pôs o país inteiro a discutir os
limites da autoridade escolar, é bom recordar que
este caso também começou com um telemóvel. A aluna
que foi alvo da praxe desobedeceu à ordem de não
atender telefonemas durante as praxes e atendeu uma
chamada da mãe. O que se seguiu foi, segundo o juiz,
"uma retaliação". Era da praxe? Quem decide o que é,
ou não, da praxe? Os veteranos? Os ex-caloiros dos
anos mais recentes? Todos e ninguém? O facto de as
praxes terem, aos poucos, suscitado vários
movimentos de contestação não será, como agora
alguns querem fazer crer, derivado a uma reacção "de
esquerda" a tradições "de direita", mas sim à
miséria a que muitas praxes se deixaram reduzir,
aviltadas pelos seus cultores a exercícios de
imbecilidade animalesca. Os que defendem que a praxe
é integradora, e ainda agora surgiram vozes nesse
sentido no debate que se seguiu ao anúncio da
sentença, que mostrem como. Deixando, de
preferência, os excrementos de lado. Excrementos? O
enraizamento da "tradição" é tal que até um
professor veio dizer, durante o processo, que "é
preciso desmistificar as fezes"; e a própria
directora da escola admitiu que era "normal a praxe
com bosta". Pois estamos a tempo de deixar de ser.
De deixarmos de considerar normal esta anormalidade.
E de devolver às praxes, onde estas se mantenham, a
dignidade que os seus defensores reclamam. Isto se
ainda lhes resta alguma.