Se o leitor é um trabalhador do comércio, alimentar
ou de outro sector sob a alçada da ASAE, já sabe o
que o espera: corre o risco de ser um dos 410
indivíduos que a agência dirigida por António Nunes
calcula que serão detidos este ano. Ou um dos 1230
que serão suspensos pela certa. A ASAE, cujo zelo já
atingiu o limiar da lenda, introduziu uma nova
dimensão do Estado de direito - podemos
adequadamente dizer que introduziu a quinta dimensão
do Estado de direito. O crime já não depende do
acaso. Planeia-se! E muito bem, que Portugal não é
nenhum casino.
Graças ao documento cuja existência António Nunes
negou, em diversas tonalidades, ao longo das últimas
semanas, ficamos a saber, segundo o Expresso, que
até ao fim do ano a ASAE detectará 25.420
infracções. Nem mais uma, nem menos uma: 25.420.
Mesmo na União Soviética, quando inventaram os
planos quinquenais, deixaram escapar esta ideia. Mas
se as coisas continuarem como estão, o futuro pode
muito bem chegar a isto: um plano quinquenal para o
crime fixando a evolução do carjacking, do tráfico
de droga e assim por diante.
O director-geral da ASAE acabou por assumir que as
metas para os inspectores existiam naquilo que
designou como um "documento de trabalho". Há uma
polissemia imensa na expressão "documento de
trabalho". Se bem entendi a defesa da ASAE, se não
fosse um "documento de trabalho", era para cumprir.
Como é um "documento de trabalho", não conta. É como
se um director de jornal pedisse ao crítico de
música contemporânea que fosse cobrir o anúncio dos
convocados da selecção. Perante o espanto do
crítico, o director pediria calma: "Não te rales, é
só um documento de trabalho."
Já sabíamos que havia um problema com a ASAE. E que
as críticas ao excesso de zelo da agência bem como o
facto de esta fazer avançar inspectores para acções
em áreas cuja legislação nem tinham tempo de estudar
não tiveram outra resposta que não uma mudança de
estratégia mediática. A agência especializou-se em
apresentar grandes apreensões de produtos
estragados, para fazer esquecer casos de comédia
como o da Ginjinha do Rossio e provar ao mundo a sua
utilidade.
Mas mais desmentido, menos desmentido, a confirmação
de que afinal havia metas é um verdadeiro amargo de
boca para a ASAE, essa agência que se propôs manter
longe das nossas importantes saúdes a sombra de um
prato cozinhado com colher de pau ou a miragem de um
rissol produzido artesanalmente num andar sem o
número de casas de banho estipulado pela lei. E
Paulo Portas, cujo partido está reduzido a um
aperitivo da cena política, até acabou por conseguir
marcar um ponto com esta jogada.
É um assunto muito sério. Desde logo por António
Nunes ter negado que o documento fosse da ASAE. Mas
também por não ter sido capaz de apresentar uma
justificação convincente. A ideia de que se trata de
um "documento de trabalho que não fazia a destrinça
entre objectivos operacionais e resultados
esperados", como disse aquele semanário, deixa em
aberto o que poderão ser "objectivos operacionais"
ou "resultados esperados". Ou seja, faltou à verdade
e não conseguiu explicar como é que uma agência como
a ASAE consegue perspectivar que em 2008 espera
passar 12.505 contra-ordenações. E por que não
12.506? Quanto à ideia do documento "enviado por
engano", apenas ocorre perguntar onde é que já
ouvimos isto...
Perante este quadro só resta aos potenciais
infractores uma maneira de saberem se vão ser
detidos, multados ou deixados em paz. É chamarem a
ASAE e verem o que acontece. E no caso de serem
autuados, fazem como o trabalhador do comércio do
anúncio: sobem para cima do balcão e dizem: "Eu não
pago."