Público - 13 Mai 08

 

Chamem a ASAE
Miguel Gaspar

 

Se o leitor é um trabalhador do comércio, alimentar ou de outro sector sob a alçada da ASAE, já sabe o que o espera: corre o risco de ser um dos 410 indivíduos que a agência dirigida por António Nunes calcula que serão detidos este ano. Ou um dos 1230 que serão suspensos pela certa. A ASAE, cujo zelo já atingiu o limiar da lenda, introduziu uma nova dimensão do Estado de direito - podemos adequadamente dizer que introduziu a quinta dimensão do Estado de direito. O crime já não depende do acaso. Planeia-se! E muito bem, que Portugal não é nenhum casino.

 

Graças ao documento cuja existência António Nunes negou, em diversas tonalidades, ao longo das últimas semanas, ficamos a saber, segundo o Expresso, que até ao fim do ano a ASAE detectará 25.420 infracções. Nem mais uma, nem menos uma: 25.420. Mesmo na União Soviética, quando inventaram os planos quinquenais, deixaram escapar esta ideia. Mas se as coisas continuarem como estão, o futuro pode muito bem chegar a isto: um plano quinquenal para o crime fixando a evolução do carjacking, do tráfico de droga e assim por diante.

 

O director-geral da ASAE acabou por assumir que as metas para os inspectores existiam naquilo que designou como um "documento de trabalho". Há uma polissemia imensa na expressão "documento de trabalho". Se bem entendi a defesa da ASAE, se não fosse um "documento de trabalho", era para cumprir. Como é um "documento de trabalho", não conta. É como se um director de jornal pedisse ao crítico de música contemporânea que fosse cobrir o anúncio dos convocados da selecção. Perante o espanto do crítico, o director pediria calma: "Não te rales, é só um documento de trabalho."

 

Já sabíamos que havia um problema com a ASAE. E que as críticas ao excesso de zelo da agência bem como o facto de esta fazer avançar inspectores para acções em áreas cuja legislação nem tinham tempo de estudar não tiveram outra resposta que não uma mudança de estratégia mediática. A agência especializou-se em apresentar grandes apreensões de produtos estragados, para fazer esquecer casos de comédia como o da Ginjinha do Rossio e provar ao mundo a sua utilidade.

 

Mas mais desmentido, menos desmentido, a confirmação de que afinal havia metas é um verdadeiro amargo de boca para a ASAE, essa agência que se propôs manter longe das nossas importantes saúdes a sombra de um prato cozinhado com colher de pau ou a miragem de um rissol produzido artesanalmente num andar sem o número de casas de banho estipulado pela lei. E Paulo Portas, cujo partido está reduzido a um aperitivo da cena política, até acabou por conseguir marcar um ponto com esta jogada.

 

É um assunto muito sério. Desde logo por António Nunes ter negado que o documento fosse da ASAE. Mas também por não ter sido capaz de apresentar uma justificação convincente. A ideia de que se trata de um "documento de trabalho que não fazia a destrinça entre objectivos operacionais e resultados esperados", como disse aquele semanário, deixa em aberto o que poderão ser "objectivos operacionais" ou "resultados esperados". Ou seja, faltou à verdade e não conseguiu explicar como é que uma agência como a ASAE consegue perspectivar que em 2008 espera passar 12.505 contra-ordenações. E por que não 12.506? Quanto à ideia do documento "enviado por engano", apenas ocorre perguntar onde é que já ouvimos isto...

 

Perante este quadro só resta aos potenciais infractores uma maneira de saberem se vão ser detidos, multados ou deixados em paz. É chamarem a ASAE e verem o que acontece. E no caso de serem autuados, fazem como o trabalhador do comércio do anúncio: sobem para cima do balcão e dizem: "Eu não pago."