O repórter Tintin na sua clássica aventura de 1937
L'Oreille Cassée (em português O Ídolo Roubado)
visitou San Theodoros, uma república sul-americana
então governada pelo general Alcazar. Aí o exército
tinha 3487 coronéis e só 49 cabos. Esta situação
anómala parece reproduzir-se na legislação
contemporânea.
O direito pretende regular a vida concreta das
sociedades. Para isso cria vários tipos de diplomas
que, como no exército, seguem hierarquia rígida, das
simples portarias à Constituição da República,
tratados europeus e, no cimo, direitos humanos
universais. Mas ultimamente as legislações de topo,
que deveriam ser genéricas e estruturantes, descem
cada vez mais aos pormenores da vida comum. Três
factos recentes mostram-no com clareza.
O pacote laboral apresentado pelo Governo ainda mal
começou a ser discutido. Mas toda a gente sabe que a
necessária adaptação da legislação portuguesa à
globalização vai embater na Constituição da
República. Os 296 artigos da nossa lei fundamental
estabelecem tantos detalhes que ela choca
inevitavelmente com a realidade sempre volátil e
complexa. Entre muitos outros casos, está
estabelecido que "constituem direitos das comissões
de trabalhadores exercer o controlo de gestão nas
empresas" (art. 54.º, n.º 5 a) ou que "incumbe ao
Estado assegurar (...) a fixação, a nível nacional,
dos limites da duração do trabalho" (art. 59.º, n.º
2 b). Isto encontra-se ao mesmo nível do hino,
bandeira, parlamento e tribunais. Com tal minúcia,
não admira que do início de 2003 ao fim do mês
passado o nosso Tribunal Constitucional tenha
emitido 3681 acórdãos, mais que os coronéis de San
Theodoros.
As leis europeias fundamentais sobrepõem- -se à
nossa Constituição, mas são ainda mais intrometidas.
Com a revisão do recente Tratado de Lisboa, os dois
textos que regulamentam a União Europeia têm um
total 413 artigos, sem falar nos 37 protocolos e 65
declarações anexas. Um dos dois, o Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia, desce a temas tão
variados como "as exigências em matéria de bem-estar
dos animais" (art. 13.º), o "intercâmbio de jovens e
animadores socioeducativos" (art. 165.º n.º 2) e a
necessidade de "incentivar a criação de um clima
propício ao desenvolvimento das empresas" de turismo
(art. 195 n.º 1 a).
No topo da legislação mundial estão as declarações
universais dos direitos humanos. Esses são
princípios essenciais e nucleares, aplicáveis a toda
a gente em todos os locais e circunstâncias. Seria
de esperar a generalidade e o laconismo apropriados,
não a cacofonia. Mas as declarações multiplicam-se,
junto com as organizações capacitadas para os
formular, do Conselho da Europa à Organização de
Unidade Africana. Só as Nações Unidas já criaram 12
comités de peritos em direitos humanos, gerados por
dois pactos, cinco convenções e cinco protocolos
adicionais.
Após cinco anos de negociações, acaba de ser
apresentado, sob a presidência de uma diplomata
portuguesa, Catarina de Albuquerque, mais um
Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre
os Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU.
Esse pacto estabelece direitos como a "difusão de
princípios de educação nutricional" (art. 11.º), a
liberdade de "escolher para seus filhos (ou pupilos)
estabelecimentos de ensino diferentes dos poderes
públicos" (art. 13 n.º 3), de "participar na vida
cultural" (art. 15.º 1 a) ou "beneficiar do
progresso científico e das suas aplicações" (art.
15.º 1 b).
Para que servem todas estas declarações? Se são
genéricas, ficam letra morta, admitindo
interpretações mais contraditórias (o aborto é
promovido como direito). Se são concretas, ficam
deslocadas da realidade. Entretanto multiplicam-se
as queixas, processos e debates.
Em Portugal o desemprego cresce, a Europa sofre
decadência demográfica e o mundo vive uma crise
alimentar. O que prospera triunfalmente por todo o
lado é a produção legislativa. Como os pobres cabos
de San Theodoros, cada vez que cada um de nós
respira, fá-lo sob uma miríade de leis e
regulamentos que manda e vigia.