A procriação medicamente assistida constitui a
resposta que a ciência e a tecnologia associada
deram ao legítimo anseio de milhões de casais no
mundo inteiro de poderem ter filhos. Há algumas
décadas a infertilidade era considerada apenas uma
fatalidade. Hoje é algo superável. Os casais que se
incluíam, conformadamente, na vasta categoria dos
que não podiam ter filhos foram substituídos por
casais que acedem a diagnósticos antes impensáveis e
a tratamentos com crescente taxa de sucesso.
Trata-se pois de uma conquista como muitas outras de
que as sociedades actuais são beneficiárias, e como
sempre acontece nestas questões em que a ciência
abre horizontes novos, obriga a reflexão e ao
estabelecimento de regras que impeçam a perversão
dos fins que se pretendem alcançar.
E é aí que entra o legislador, e dele espera-se que
reconheça uma necessidade social à qual a ciência e
a tecnologia deram resposta, proteja as expectativas
criadas e assegure a orientação das práticas que
respondam primordialmente à finalidade reprodutiva,
tendo presente que tais práticas actuam sobre um
elemento - o embrião humano - no qual reside um bem
- a vida humana - com respaldo constitucional.
Não se espera que, por menor reflexão ou maior
despique ideológico, abra a porta a que esta
finalidade, claramente reprodutiva, venha a ceder,
de modo sub-reptício, a outros motivos ou fins
exteriores ao nascituro.
Nos últimos 50 anos, com a pílula contraceptiva, a
liberalização do aborto e as técnicas cada vez mais
sofisticadas da procriação medicamente assistida,
consolida-se um processo de dissociação entre
procriação e sexualidade. Independentemente do juízo
de valor que cada um faça, é generalizado o
entendimento de que esta ruptura antropológica
requer um tratamento esclarecido e prudente.
E não é nem esclarecido nem prudente um tratamento
legislativo que possa permitir - sobretudo se essa
não é a intenção do legislador - um progressivo
desvio da finalidade claramente reprodutiva, para
satisfazer um mercado crescente através da criação
de puro material de investigação (denominada
terapêutica), de doadores (bebé-medicamento), de
selecção de um nascituro em função de um interesse
terceiro, da clonagem, do comércio livre de óvulos,
embriões, etc.
É este o ponto mais relevante da lei: saber se as
suas lacunas, omissões ou pequenas "frestas"
abertas, mais em função de circunstâncias do que de
princípios claramente assumidos, podem conduzir a
que a mesma lei sirva como norma de promoção do uso
de embriões na investigação, e até na clonagem, com
fins não reprodutivos, do comércio de pré-embriões e
o seu uso industrial.
Um aspecto particularmente relevante e elucidativo
suscita preocupação: o uso dos embriões
excedentários para fins de investigação.
De facto não se entende se a opção foi feita com
base em dar um "destino útil" a embriões que não vão
ser implantados, ou se o legislador quis consagrar a
investigação em embriões viáveis. Na primeira
hipótese estamos perante uma mera circunstância, já
que os embriões excedentários tendem a diminuir com
o estado da arte, prevê-se o incremento da doação de
embriões, o alargamento das técnicas de conservação
permitindo uma selecção natural. Ou seja, é razoável
pensar que estamos perante uma situação cada vez
mais residual, não justificando uma solução
legislativa como que de "aproveitamento de
desperdícios", aparentemente desproporcional ao
princípio que derroga.
Mas se estamos perante a segunda hipótese, isso
significa que o legislador quis consagrar a
investigação em embriões humanos viáveis e a
pergunta é porque não o fez claramente e usou a
forma encapotada do falso problema dos embriões
excedentários?
A ser assim, o que se legislou, na prática, foi a
eliminação, numa matéria desta natureza, da
distinção fundamental entre sujeito/pessoa e
objecto/coisa no que se refere a embriões não
transferidos.
Quando falo na necessidade de esclarecimento e
prudência em matérias cuja substância toca questões
essenciais que a evolução científica e tecnológica
obrigam a rever, estou a antecipar-me a futuras
próximas atrapalhações políticas face a uma agenda
anunciada. Esta lei deveria ter sido feita há anos
mas o vazio legal era mais cómodo. Comodidade é o
que não se espera nestes tempos de profunda mudança
fruto da enorme sacudidela a que a condição humana
foi sujeita na segunda metade do século XX, obtendo
pela primeira vez o domínio da própria espécie. O
poder político, a sociedade civil, a comunidade
científica devem ter presentes os desafios que,
neste século, se lhes vão colocar. Os quais se
resumem, no essencial, a esta coisa simples: que
humanidade vai ser a nossa e como poderemos usar a
ciência e o progresso, sempre e ainda, ao serviço do
valor essencial da sua dignidade.