Aventura ou pesadelo, história de
uma fuga amorosa
Em 1993, um grupo de quatro adolescentes das Caldas da
Rainha saiu de casa sem aviso, deixando os pais e os amigos
em pânico. O objectivo era desaparecer para sempre, namorar
à vontade, experimentar o mundo sob o efeito das drogas.
Durante mais de um mês, as caras dos jovens foram das mais
procuradas do país, aparecendo frequentemente nas televisões
e nos jornais. A aventura terminaria em Vigo, quando a
doença e a fome reclamaram o conforto familiar. Doze anos
depois, o PÚBLICO põe em confronto, em discurso directo, o
modo como esses dias foram sentidos por uma das raparigas do
grupo e pela mãe do seu namorado, que fugiu com ela e com
outro casal de namorados
Susana, fugitiva
"Estudámos o trajecto, os comboios que tínhamos de apanhar,
onde pernoitaríamos"
Tudo começou quando o meu período falhou. Fiquei em pânico,
julgando que estava grávida do Nuno [nome fictício, como
todos os que aqui aparecem, do namorado]. Sabia que a
notícia seria mal aceite lá em casa, sobretudo pelo meu pai,
que nessa altura era contra o nosso relacionamento.
Juntamente com dois amigos, o Rui e a Marta, eu e o Nuno
decidimos então que o melhor era fugir. Em poucos dias, no
maior secretismo, organizámos tudo, entusiasmados: estudámos
o trajecto da fuga, os comboios que tínhamos de apanhar,
onde pernoitaríamos.
Precavemo-nos também em relação à nossa sobrevivência
imediata. Enquanto não nos instalássemos e arranjássemos
trabalho, era preciso ter dinheiro. Cada um de nós roubou o
que pôde aos pais: o Nuno conseguiu levantar um cheque de
cento e tal contos; eu tirei uns 30, 40 contos que a minha
mãe tinha guardado em casa; os outros também arranjaram mais
ou menos o mesmo.
Estava tudo, enfim, preparado para a partida quando, na
véspera, descobri que, afinal, não estava grávida. Vacilei.
Só que, nesta altura, já toda a gente estava excitada com a
ideia de sair das Caldas e viver em total liberdade.
Hoje acho que, no meu caso, pesou bastante querer pregar um
susto ao meu pai. De forma mais ou menos consciente, acho
que foi sobretudo a oposição do meu pai ao meu namoro com o
Nuno que me fez avançar. Não estava grávida mas continuava
com esse problema. Expliquei-o numa carta de despedida, que
deixei no hall de entrada, antes de partir para a estação de
comboios.
Não me lembro bem do dia. Foi em Novembro... não, foi em
Outubro. Lembro-me que o comboio saiu ao meio-dia e que,
para confundir os pais, trocámos de transporte várias vezes.
Sei que estivemos em Campanhã, no Porto, onde apanhámos
outro comboio para Guimarães, a nossa primeira estadia.
A nossa ideia, de início, era instalarmo-nos aí de forma
definitiva. Mas, ao terceiro dia, um amigo nosso, que íamos
contactando, telefonou-nos a avisar que a PJ estava no nosso
encalço. Nessa mesma noite, decidimos partir. Às duas da
manhã, apanhámos um táxi em direcção a Valença do Minho, na
fronteira com Espanha. Foram duas horas de viagem. Pagámos
um balúrdio. Alugámos um quarto e, de manhã, seguimos para
Vigo, na Galiza.
"O dinheiro acabou mesmo"
Uma vez aqui, ficámos alojados na pensão de um português. E
começámos a procurar trabalho, visto que o dinheiro que
leváramos de casa já escasseava. Contudo, sendo todos
menores - tínhamos 17 anos - e não dominando bem a língua,
ninguém nos queria dar emprego. O português da pensão ainda
nos ajudou: de manhã, íamos comprar os jornais para ver as
ofertas de emprego e depois ele é que fazia os contactos.
Mesmo assim, não conseguimos nada.
O dinheiro acabou mesmo e as coisas complicaram-se. Tivemos
que nos mudar para uma casa de okupas. De dia, pedíamos na
rua e recorríamos às refeições distribuídas aos sem-abrigo
pelas instituições de solidariedade da cidade. Quando
conseguíamos, ainda roubávamos alguma coisa nos
supermercados - o Nuno não gostava nada de pedir. Andávamos
todos porcos. A casa não tinha água.
Entretanto, o Rui separou-se da Marta. A Marta consumia
heroína, entrou noutras ondas. Os okupas consomem muita erva
mas não deixam entrar drogas duras, pelo que a Marta chegou
a passar noites fora, não sabíamos onde nem com quem. O Nuno
também já consumira heroína, mas controlava-se.
Para o fim, começámos a telefonar para casa. Mas sempre sem
falar directamente com os nossos pais: a Marta falava com a
minha mãe ou com a mãe do Nuno, por exemplo, e eu telefonava
para a mãe dela. Dizíamos que estava tudo bem. Não estava.
Às vezes, dormíamos na rua, cheios de frio. Acabámos por
adoecer. O Rui andava muito magro, ficou com febre. Eu
apanhei uma infecção urinária. Foi a gota de água. Um mês e
meio depois de fugirmos, ligámos para casa e pedimos que nos
viessem buscar.
Lembro-me que combinámos ao pé do El Corte Inglés. O meu
pai, quando me viu, a primeira coisa que disse foi: "Então,
a lua-de-mel já acabou!" Ele conseguiu sempre manter o bom
humor. Já nas Caldas, fui viver com o Nuno, para casa dos
pais dele. Anos depois tivemos um filho e, actualmente,
vivemos todos juntos e felizes.
Olhando para trás, vejo que esta experiência foi uma ilusão,
fruto da imaturidade. Mas admito, também, que me ajudou a
crescer. Que foi, também, uma grande lição de vida.