Diário de Notícias -
11 Mai 05
A Joana e a Vanessa
José de Matos Correia
Ainda não refeitos do choque provocado pelas circunstâncias que
terão rodeado a morte e o desaparecimento do corpo da Joana, somos
agora confrontados com o homicídio, também em condições de grande
violência, da Vanessa. Indignámo-nos todos, genuinamente, com ambas
as tragédias.
Porque roubaram a vida a dois pequenos seres que tinham pela frente
uma existência inteira. Porque os actos praticados se revestem de
uma maldade inimaginável. Porque os alegados responsáveis são
familiares próximos, justamente aqueles de quem se esperaria que
tudo fizessem para proteger as crianças a seu cargo.
Como normalmente sucede nestas ocasiões, o tema da violência sobre
as crianças tornou-se objecto central das discussões.
Fizeram-se reportagens televisivas, escreveram-se artigos nos
jornais, produziram-se análises variadas, promoveram-se debates,
recordaram-se casos anteriores de contornos similares, alertou-se
para o número elevado de jovens em risco.
Infelizmente, porém, sempre que cada novo crime ocorre constata-se
que pouco ou nada mudou.
Penso, por isso, que é cada vez mais urgente que sejamos capazes de
compreender os diversos planos em que temos de agir, pois só assim
conseguiremos diminuir drasticamente os níveis da violência
infantil.
O primeiro plano é, evidentemente, o do Estado. E não apenas pelo
facto de uma das suas funções essenciais ser justamente a garantia
da segurança das pessoas, em particular das mais vulneráveis.
É que um dos aspectos que mais me impressionaram nestas situações
foi o registo burocrático do seu tratamento.
Desde a remessa de papéis de um lado para o outro aos sistemáticos
atrasos e adiamentos, aos deficientes canais de comunicação entre os
serviços públicos responsáveis, tudo aconteceu.
Em consequência, ficámos com a sensação, porventura injustamente, de
que em Portugal os assuntos relacionados com a protecção de menores
em risco constituem uma prioridade de segunda linha.
Devemos, assim, exigir ao Estado que se concentre mais e mais
naquilo que são as suas tarefas indelegáveis em vez de, como tantas
vezes sucede, se intrometer onde não é necessário nem chamado.
E o combate à violência de que as crianças são alvo é, certamente,
uma dessas tarefas indelegáveis.
O segundo plano é o da sociedade. Embora reconhecendo que o Estado
tem que desempenhar um papel central, não podemos cair no erro
habitual de transferir para ele todos os encargos.
Uma sociedade que regista um tão elevado grau de desrespeito pelos
direitos fundamentais das crianças é, evidentemente, uma sociedade
doente. Nessa medida, cada um de nós deve ser convocado para o
combate a estes dramas.
Não nos demitindo das nossas responsabilidades cívicas, ficando
atentos aos sinais, intervindo junto das entidades competentes
sempre que isso se justifique.
O terceiro plano tem que ver com a política criminal. Sei que é
politicamente correcto elogiar, no plano dos conceitos e da medida
das punições, a legislação penal portuguesa.
Por mim, tenho fundadas dúvidas acerca de muitas soluções vigentes,
que frequentemente parecem mais preocupadas com os que cometem um
crime do que com as vítimas ou com a defesa da própria sociedade.
E, em casos de homicídios de crianças, ainda para mais envolvendo a
utilização de elevada violência, vale a pena ponderar seriamente se
a pena aplicável é adequada à gravidade dos factos praticados.
Uma conclusão me parece, porém, impor-se.
Desta vez, as coisas não podem mais permanecer na mesma.
Devemos isso aos milhares de crianças em risco, pois não podemos
nunca esquecer que aquilo que para a generalidade de nós é uma
estatística, para cada uma dessas crianças representa um martírio
quotidianamente repetido.
Mas devemos isso também, muito especialmente, à memória da Joana e
da Vanessa.
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