Expresso - 2 Mai 05

Uma Inglaterra que já não é?

«Segundo Ralf Dahrendorf, o fundador do St. Antony’s College, de Oxford, representou o profundo sentido de decência de uma Inglaterra que já não é?»

Profundo sentido de decência «William Deakin representou a Inglaterra que todos nos habituámos a admirar. Uma Inglaterra livre e ordeira, orgulhosa mas discreta, polida e gentil, uma Inglaterra, sobretudo, com um profundo sentido de decência. Numa palavra, William Deakin representou uma Inglaterra que já não é.»

Estas foram as palavras emocionadas de Lord Dahrendorf - cidadão britânico, ex-ministro alemão e ex-comissário europeu da antiga República Federal da Alemanha - na cerimónia de homenagem do St. Antony’s College, de Oxford, ao seu fundador, recentemente falecido, William Deakin.

No vasto salão do colégio, um longo silêncio envolveu as centenas de participantes na cerimónia. E as palavras de Dahrendorf ecoavam pesadamente sobre nós: «An England with a deep sense of decency. An England that no longer is.»

25 de Abril na velha Inglaterra Comemorei os 31 anos da nossa democracia na velha Inglaterra, com um grupo de mestrandos e doutorandos do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa que estudaram ou ainda estudam em Oxford, ao abrigo de um programa de intercâmbio entre aquelas universidades - um programa, por sinal, muito raro na Universidade de Oxford.

Na sexta-feira, 22 de Abril, jantámos e pernoitámos no Oxford and Cambridge Club, de Londres. No sábado de manhã, visitámos os Cabinet War Rooms e o Churchill Museum. À tarde, já em Oxford, assistimos à homenagem a William Deakin, no St. Antony’s. Ao jantar, no Old Bank Hotel, da High Street, discutimos intensamente pela noite dentro «a Inglaterra que já não é» - ou, talvez, o Ocidente que já não é.

No domingo, tomámos o autocarro para Blenheim, o palácio dos duques de Malborough, antepassados de Winston Churchill. Foi neste berço grandioso - talvez excessivamente grandioso para o gosto discreto inglês - que Winston nasceu, por acaso e prematuramente, a 30 de Novembro de 1874.

A glória do jardim Foi uma prolongada visita à velha Inglaterra. Aquela que, como recordou Dahrendorf, nos habituámos a admirar enquanto símbolo da democracia, da liberdade ordeira e, de novo Dahrendorf, de um profundo sentido de decência.

É inútil tentar definir este profundo sentido de decência na linguagem racionalista das ideologias modernas. É mesmo possível argumentar que o apogeu das ideologias na mente moderna é o que subjaz à erosão da Inglaterra de Dahrendorf. Ao contrário das ideologias modernas, a velha Inglaterra não se dá a conhecer em teorias abstractas alegadamente assentes em premissas racionalmente demonstradas. Ela revela-se gradualmente apenas àqueles que sabem ser tocados por ela - e que procuram então descobri-la, sem querer dominá-la com teorias abstractas. Rudyard Kipling captou em boa parte este mistério:

«Our England is a garden that is full of stately views,

Of borders, beds and shrubberies and lawns and avenues,

With statues on the terraces and peacoks strutting by;

But the Glory of the Garden is more than meets the eye.»

A erosão das maneiras Se há um aspecto onde a erosão da Inglaterra de Dahrendorf é hoje visível a olho nu é, sem dúvida, o das maneiras. Até no Oxford and Cambridge Club, alguns sócios protestam - até agora apenas com êxito ao pequeno-almoço - contra a obrigatoriedade de usar casaco e gravata. Edmund Burke insistia que «as maneiras são mais importantes do que as leis. Delas dependem, em grande parte, as leis. A lei toca-nos apenas aqui e ali, de vez em quando. As maneiras é o que nos agride ou conforta, nos corrompe ou purifica, nos degrada ou enobrece, nos barbariza ou refina, através de uma operação constante, firme, uniforme e insensível, como o ar que respiramos. Elas dão toda a cor e forma às nossas vidas. Consoante a sua qualidade, elas ajudam a moral, fornecem-na, ou então destroem-na completamente».

Ditadura relativista Na segunda-feira, 25 de Abril, de novo em Londres, participei num almoço-debate sobre a eutanásia no «think-tank» Politeia. As palavras de Dahrendorf, ausente neste debate, ressoaram de novo na minha memória à medida que o debate se desenrolava. A maioria dos presentes mostrava-se muito preocupada com o subtil crescimento de «uma cultura de morte» que hoje banaliza e tenta destruir o que antes era um absoluto moral: o respeito pela vida. Um dos intervenientes - que, de acordo com as «Chatham House Rules», não estou autorizado a identificar - foi mesmo ao ponto de dizer o seguinte:

«A banalização da vida é o primeiro passo para a banalização do mal. Os alemães que se recordam do nazismo sabem isso muito bem, e não é por acidente que na Alemanha existe uma enorme resistência à legalização da eutanásia. Se a eutanásia é hoje apresentada como banal pelos ‘media’, isso deve-se à feroz destruição dos nossos padrões morais que tem sido operada pela nova ditadura politicamente correcta: a ‘ditadura do relativismo’, se os cavalheiros me permitirem citar o novo Papa da Igreja católica romana.»

Secularistas evangélicos O que se seguiu foi um pouco surpreendente. Não só os cavalheiros permitiram que o Papa Bento XVI fosse citado, como vários intervieram depois para o citar. «O relativismo está a destruir o Ocidente, porque prega a equivalência de todos os padrões morais, impedindo a discussão sobre os padrões. Não foi nesta Inglaterra relativista que eu fui educado», disse um dos cavalheiros com energia. «Na verdade, estamos submetidos a uma ditadura dos ‘media’ politicamente correctos: se alguém fala em moral, para nem dizer em religião, acusam-no de fundamentalista e extremista, e ele é obrigado a calar-se. É acusado de fundamentalista evangélico, mas, na verdade, o que hoje temos é secularistas evangélicos que proíbem a discussão da moral e da religião na praça pública.»

jcespada@netcabo.pt

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