Uma Inglaterra que já não é?
«Segundo
Ralf Dahrendorf, o fundador do St. Antony’s College, de Oxford,
representou o profundo sentido de decência de uma Inglaterra que
já não é?»
Profundo sentido de decência
«William Deakin representou a Inglaterra que todos nos
habituámos a admirar. Uma Inglaterra livre e ordeira, orgulhosa
mas discreta, polida e gentil, uma Inglaterra, sobretudo, com um
profundo sentido de decência. Numa palavra, William Deakin
representou uma Inglaterra que já não é.»
Estas foram
as palavras emocionadas de Lord Dahrendorf - cidadão britânico,
ex-ministro alemão e ex-comissário europeu da antiga República
Federal da Alemanha - na cerimónia de homenagem do St. Antony’s
College, de Oxford, ao seu fundador, recentemente falecido,
William Deakin.
No vasto
salão do colégio, um longo silêncio envolveu as centenas de
participantes na cerimónia. E as palavras de Dahrendorf ecoavam
pesadamente sobre nós: «An England with a deep sense of decency.
An England that no longer is.»
25 de Abril na velha Inglaterra
Comemorei os 31 anos da nossa democracia na velha Inglaterra,
com um grupo de mestrandos e doutorandos do Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica Portuguesa que estudaram ou
ainda estudam em Oxford, ao abrigo de um programa de intercâmbio
entre aquelas universidades - um programa, por sinal, muito raro
na Universidade de Oxford.
Na
sexta-feira, 22 de Abril, jantámos e pernoitámos no Oxford and
Cambridge Club, de Londres. No sábado de manhã, visitámos os
Cabinet War Rooms e o Churchill Museum. À tarde, já em Oxford,
assistimos à homenagem a William Deakin, no St. Antony’s. Ao
jantar, no Old Bank Hotel, da High Street, discutimos
intensamente pela noite dentro «a Inglaterra que já não é» - ou,
talvez, o Ocidente que já não é.
No domingo,
tomámos o autocarro para Blenheim, o palácio dos duques de
Malborough, antepassados de Winston Churchill. Foi neste berço
grandioso - talvez excessivamente grandioso para o gosto
discreto inglês - que Winston nasceu, por acaso e
prematuramente, a 30 de Novembro de 1874.
A glória do jardim
Foi uma prolongada visita à velha Inglaterra. Aquela que, como
recordou Dahrendorf, nos habituámos a admirar enquanto símbolo
da democracia, da liberdade ordeira e, de novo Dahrendorf, de um
profundo sentido de decência.
É inútil
tentar definir este profundo sentido de decência na linguagem
racionalista das ideologias modernas. É mesmo possível
argumentar que o apogeu das ideologias na mente moderna é o que
subjaz à erosão da Inglaterra de Dahrendorf. Ao contrário das
ideologias modernas, a velha Inglaterra não se dá a conhecer em
teorias abstractas alegadamente assentes em premissas
racionalmente demonstradas. Ela revela-se gradualmente apenas
àqueles que sabem ser tocados por ela - e que procuram então
descobri-la, sem querer dominá-la com teorias abstractas.
Rudyard Kipling
captou em boa parte este mistério:
«Our England is a
garden that is full of stately views,
Of borders, beds and
shrubberies and lawns and avenues,
With statues on the
terraces and peacoks strutting by;
But the Glory of the
Garden is more than meets the eye.»
A erosão das maneiras
Se há um aspecto onde a erosão da Inglaterra de Dahrendorf é
hoje visível a olho nu é, sem dúvida, o das maneiras. Até no
Oxford and Cambridge Club, alguns sócios protestam - até agora
apenas com êxito ao pequeno-almoço - contra a obrigatoriedade de
usar casaco e gravata. Edmund Burke insistia que «as maneiras
são mais importantes do que as leis. Delas dependem, em grande
parte, as leis. A lei toca-nos apenas aqui e ali, de vez em
quando. As maneiras é o que nos agride ou conforta, nos corrompe
ou purifica, nos degrada ou enobrece, nos barbariza ou refina,
através de uma operação constante, firme, uniforme e insensível,
como o ar que respiramos. Elas dão toda a cor e forma às nossas
vidas. Consoante a sua qualidade, elas ajudam a moral,
fornecem-na, ou então destroem-na completamente».
Ditadura relativista
Na segunda-feira, 25 de Abril, de novo em Londres, participei
num almoço-debate sobre a eutanásia no «think-tank» Politeia. As
palavras de Dahrendorf, ausente neste debate, ressoaram de novo
na minha memória à medida que o debate se desenrolava. A maioria
dos presentes mostrava-se muito preocupada com o subtil
crescimento de «uma cultura de morte» que hoje banaliza e tenta
destruir o que antes era um absoluto moral: o respeito pela
vida. Um dos intervenientes - que, de acordo com as «Chatham
House Rules», não estou autorizado a identificar - foi mesmo ao
ponto de dizer o seguinte:
«A
banalização da vida é o primeiro passo para a banalização do
mal. Os alemães que se recordam do nazismo sabem isso muito bem,
e não é por acidente que na Alemanha existe uma enorme
resistência à legalização da eutanásia. Se a eutanásia é hoje
apresentada como banal pelos ‘media’, isso deve-se à feroz
destruição dos nossos padrões morais que tem sido operada pela
nova ditadura politicamente correcta: a ‘ditadura do relativismo’,
se os cavalheiros me permitirem citar o novo Papa da Igreja
católica romana.»
Secularistas evangélicos
O que se seguiu foi um pouco surpreendente. Não só os
cavalheiros permitiram que o Papa Bento XVI fosse citado, como
vários intervieram depois para o citar. «O relativismo está a
destruir o Ocidente, porque prega a equivalência de todos os
padrões morais, impedindo a discussão sobre os padrões. Não foi
nesta Inglaterra relativista que eu fui educado», disse um dos
cavalheiros com energia. «Na verdade, estamos submetidos a uma
ditadura dos ‘media’ politicamente correctos: se alguém fala em
moral, para nem dizer em religião, acusam-no de fundamentalista
e extremista, e ele é obrigado a calar-se. É acusado de
fundamentalista evangélico, mas, na verdade, o que hoje temos é
secularistas evangélicos que proíbem a discussão da moral e da
religião na praça pública.»
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