Público - 26 Mai 03
A TEMPO E A CONTRATEMPO
Por MÁRIO PINTO
O problema da perfeição
Há quinze dias, escrevi sobre a felicidade, sobre a questão de saber se a
felicidade está na satisfação das paixões ou na submissão destas à recta
razão. Optei pela superioridade da recta razão. Hoje continuo de certo
modo a reflexão anterior, perguntando: e qual é então o
ideal que a recta razão nos propõe em alternativa à
satisfação das paixões? O homem é por natureza um ser
perfectível (disso não há dúvidas) e, por consequência, não pode
deixar de colocar-se a si próprio o problema da sua perfeição. Como é que
se coloca a questão da perfeição do homem?
Alguns preferem postular que não é possível conceber um ideal de perfeição
para o homem, e só poderá haver um ideal distinto para cada homem. O que
quer dizer que poderá não haver perfeição alguma. Com efeito, se a
perfeição individual for referida a uma opção relativa e
até subjectiva, então falta o "tertium comparationis",
sem o qual não há maneira de comparar nem medir. Em
consequência, é impossível concluir pela perfeição, que é um grau, o
supremo, de uma operação de comparação e medida.
Mas é existencialmente impossível, para a maioria dos homens, liquidar assim
o problema da sua perfectibilidade. Na história da filosofia, este
problema é permanente, sob várias formulações, e creio
que podemos distinguir três maiores concepções acerca da
perfeição humana, respectivamente baseadas na força, no
conhecimento e no amor.
Para a "antiguidade bárbara", a perfeição está na força, na coragem, na
bravura. O perfeito é o herói da força, aquele que vence os demais por
actos de coragem, de bravura, de habilidade. Segundo este
critério, o vencedor é o rei. Assim, a virtude da
fortaleza é a maior virtude. Uma certa aliança existia,
antigamente, entre a força e o poder político e social: a força, a
maior valentia, dava e legitimava o poder; e este reforçava aquela. Hoje,
há uma sobrevivência desta concepção na «realeza»
idolátrica de certos "heróis", por exemplo do desporto.
Porém, uma outra concepção privilegia a inteligência. Não, afirma-se: a
perfeição não pode residir na força material, na força bruta, nem mesmo
na destreza ou habilidade; o homem é, acima de tudo, um
ser inteligente, e portanto é pelo desenvolvimento da sua
inteligência que se atinge a perfeição. A perfeição,
atingir o sumo bem, encontrar-se-ia no mais elevado
conhecimento, atingir a suma verdade. O homem perfeito seria o herói da
ciência, do conhecimento, o filósofo.
Platão, e muitos outros, pressupuseram que o homem que, em alto nível,
conhecesse o sumo bem, necessariamente amaria esse sumo bem e o seguiria.
Por isso é que ele atribuía o governo aos filósofos. Aristóteles,
contudo, viu que não basta o conhecimento para que dele
resulte a perfeição. O problema do livre arbítrio é mais
complexo. Sim, a perfeição é conduzida pelo conhecimento,
pela prudência; mas tem de se apoiar na justiça, na
fortaleza e na temperança. Em termos práticos: a inteligência, só por si,
não arrasta a vontade e a afectividade; apenas as pode iluminar e
orientar, mas não as pode mover e dominar.
Esta insuficiência do conhecimento para se atingir a perfeição é um tópico
clássico. S. Paulo deixou-nos dita em termos lapidares esta existencial
contradição: vejo o bem, e aprovo-o, e depois faço o mal que não quero. A
experiência da vida de qualquer um de nós bem nos demonstra como a
inteligência desenvolvida não anda sempre de harmonia com as virtudes.
Por vezes sucede até o contrário: a ciência pessoal muito
elevada não se acompanha do amor de Deus e do próximo,
nem do auto-domínio, nem da justiça, nem da
solidariedade, nem da tolerância, nem da compaixão. A história está
cheia de génios malditos.
Ao encontro destas evidências, há uma terceira concepção acerca da
perfeição, que, sem desvalorizar (e antes pelo contrário) a vontade e a
inteligência, coloca como virtude suprema o amor. S. Tomás de Aquino, que
conhecia muito bem esta problemática nos filósofos gregos, deixou-nos
esta tese condensada na célebre frase: "melior est amor
quam cognitio" - traduzindo: o amor é melhor do que o
conhecimento. Voltando a São Paulo, é ainda ele quem nos
diz que "a caridade é o vínculo da perfeição".
Foi de facto S. Paulo quem nos deixou talvez o mais belo hino que jamais se
escreveu ao amor (à caridade). Permita-se-me que recorde apenas umas
frases: "ainda que eu fale a língua dos homens e dos
anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que
ressoa, ou como o címbalo que tine. Ainda que eu tenha o
dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que
possua a fé em plenitude a ponto de transportar montanhas, se não tiver
caridade, nada sou. Ainda que distribua todos os meus bens aos pobres e
entregue o meu corpo às chamas para ser queimado, se não tiver caridade,
de nada me aproveita". E como que em remate profetiza:
"as profecias desaparecerão, as línguas cessarão e a
ciência findará". Mas "a caridade nunca acabará".
Na tese de S. Paulo, de S. Tomás de Aquino, enfim, na tese cristã, o amor é
que é a virtude suprema. O conhecimento, a justiça, a fortaleza e o
autodomínio, estas são as quatro virtudes cardinais, sobre que a virtude
suprema (com as suas duas outras irmãs teologais, a fé e a esperança) se
apoia. Mas trata-se de virtudes pilares; só por si, não atingem a
perfeição.
Eu creio que o amor é primacialmente a virtude do coração; só auxiliarmente
o é da vontade e da inteligência. Esta é uma ordem talvez inversa à que
se usa para as potências humanas, quando se privilegia a
inteligência ou a vontade. O leitor pode não estar de
acordo. Convido-o porém a filosofar. E como filosofar é
fazer perguntas e tentar responder, interroguemo-nos: sendo
certo que todas as potências humanas (inteligência, vontade e
afectividade) são indispensáveis, o que é que finalmente
será superior entre elas para a perfeição do homem e da
sociedade? O conhecimento? A força? Ou o amor?

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