Público - 12 Mai 03
Felicidade e Razão
Por MÁRIO PINTO
1. Numas leituras que ando fazendo de livros clássicos (infelizmente pouco
frequentados, hoje em dia), reencontrei-me com o ensinamento de S. Tomás de
Aquino acerca das paixões, e com o consequente problema da ascese que elas nos
colocam - se é que fazemos questão de proceder humanamente, isto é,
racionalmente, e não de seguir apenas segundo o que instintivamente nos agrada e
só por isso elegemos opinativamente.
Segundo S. Tomás - que se reclama de Aristóteles e de S. João Damasceno -, a
paixão é definida como um movimento ou impulso do apetite sensível, em ligação
com a representação de um bem (agradável) ou de um mal (desagradável). Nota
importante do conceito de paixão é a sua irracionalidade, melhor, a sua
anterioridade relativamente à razão.
Que o homem possui paixões é uma verdade universalmente aceite. A questão que se
coloca, a partir daí, é a de saber que posição devemos tomar acerca delas,
sobretudo na sua relação com a razão ou o exercício da razão.
Uns dizem: devemos, pura e simplesmente, de acordo com a moral do prazer,
aceitar que as paixões são boas, como legítima expansão da nossa natureza. É o
que fundamentalmente dizem os hedonistas.
Outros dizem: as paixões são forças selvagens que se opõem à recta razão e fazem
o homem infeliz: o que há que fazer é suprimir as paixões. É o que dizem certas
escolas de espiritualidade oriental, que procuram atingir a impassibilidade, e
de certo modo os estóicos.
Outros ainda dizem: devemos dominá-las, regulá-las e orientá-las segundo a recta
razão.
O hedonismo é a doutrina moral que coloca o prazer como a referência e a
essência da felicidade. Epicuro (autor de uma escola própria) defendia que a
felicidade do homem reside no prazer. E que o reconhecimento do valor
insubstituível do prazer é independente e anterior a qualquer processo de
justificação racional. Trata-se de algo que se dá ao nível pré-racional (v.
Enciclopédia Logos).
O estoicismo, que foi a corrente filosófica mais importante e duradoira na
Antiguidade, e não deixou de se continuar depois em muitas outras correntes
filosóficas posteriores, se bem que também coloca como questão fundamental do
homem a da felicidade individual (eudemonismo), nisto coincidindo com o
hedonismo, contudo vê a felicidade não como consistindo no prazer (com
privilégio para as paixões sensíveis), mas como consistindo na virtude (com
privilégio para a razão). A virtude estóica é a da independência racional, da
libertação perante os impulsos e movimentos sensíveis pré-racionais.
Muito longe dos hedonistas, mas também distinto dos estóicos, S. Tomás de Aquino
afirma que as paixões ou as emoções em si mesmas não são moralmente nem boas nem
más. Tornam-se moralmente boas se são orientadas ou reguladas pela recta razão e
pela vontade, que as utiliza como energias. As paixões tornam-se moralmente más
se não são dirigidas pela recta razão. A moralidade depende da intenção da
vontade, que é boa ou má segundo se inclina ou não para um fim justo e bom em si
mesmo - isto é, honesto. Assim, uma mesma paixão pode ser boa, se é orientada
pela vontade segundo um fim honesto, e má, se é irracional ou dominada por uma
vontade para fins desonestos. Por exemplo, a cólera pode ser uma justa cólera ou
uma cólera irracional e injusta.
Segundo S. Tomás, as paixões bem dominadas e ordenadas são magníficas energias.
Assim, as paixões ditas consequentes, isto é, que seguem o juízo da recta razão
iluminada pela fé, potenciam o mérito moral e espiritual e aumentam a força da
boa vontade em prol das grandes causas. Foi neste sentido que Pascal disse: "Sem
paixão, não é possível realizar nada de grande."
2. Destes princípios tomistas deve concluir-se que as paixões, não sendo em si
mesmas nem boas nem más, não devem por definição ser extirpadas como vícios, mas
devem, isso sim, ser submetidas à recta razão. Isto é: ser dominadas e
orientadas, e dessa maneira colocadas ao serviço da virtude.
É necessário que (e nisso consiste precisamente a educação) a luz da (recta)
razão se imponha aos nossos instintos e à nossa sensibilidade espontânea, para
que esta não permaneça entregue a si mesma como sucede num animal que não possui
a luz da razão. Claro que, para quem tem fé, a essa luz da razão acresce a luz
espiritual recebida ou infusa - a qual, contudo (note-se bem), como virtude terá
de ser exercitada (de acordo com o ensinamento de S. Tomás) ao modo humano, isto
é, pelas nossas forças e capacidades, segundo a nossa inteligência, vontade e
coração. Isto se diga para que os descrentes não pensem que a fé, a esperança e
a caridade, por serem dons sobrenaturais (que se acrescentam aos dons naturais),
operam por si mesmos segundo um modo divino, dispensando o nosso esforço
racional.
Dirão alguns: reflexões muito velhas. Respondo eu: concordo inteiramente. Mas
acrescento que são tão velhas como o homem, a sua dignidade racional e a sua
problemática existencial. Filosoficamente, nós continuamos hoje com os mesmos
problemas defrontados pela filosofia clássica e da escolástica. E essencialmente
às voltas com as mesmas respostas. A maior diferença parece-me às vezes ser a de
que os filósofos gregos e escolásticos não fugiam aos problemas e às respostas.
Enquanto nós, hoje, homens que nos cremos muito evoluídos, questionamos e
respondemos menos. Absorvidos com a técnica, limitamo-nos a um hedonismo
prático, que simplesmente embrulhamos racionalmente com o cómodo relativismo
epistemológico do pós-modernismo. Pois não é cómodo pensar que, nestas coisas,
cada um tem a sua verdade? E que, visto que não é possível demonstrar
irrecusavelmente uma verdade universal, todas as verdades são iguais e valem o
mesmo? Ou seja, que a verdade de um vale tanto como a sua contrária de outro?
Que felicidade mais cómoda! Juntamos dois em um: o regalo hedonista e a
satisfação racional epistemológica, esta sim alegadamente de valor universal - a
epistemologia anula a ontologia.
Creio que o nosso tempo necessita dramaticamente de mais e melhor filosofia. E
portanto de mais e melhores filósofos. Mas a filosofia não está na moda... Ela
só se cultiva no ritmo humano da reflexão racional e na pureza das intenções das
consciências. Modo e ambiente estes que não são redutíveis às novas tecnologias
nem aos ritmos e aos "bites" da comunicação moderna, cada vez mais submetidas ao
lucro e aos sentidos.
Será que assim não corremos o risco de ficarmos homens muito poderosos
tecnologicamente, epistemologicamente tranquilizados, sem ética e sem virtude -
portanto sem espírito, isto é, homens desalmados?

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