Público - 28 Mai 03
Foi Você Que Pediu Uma Constituição Europeia?
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Não. Não foi você, nem eu. Apesar disso, um projecto de Constituição está
praticamente pronto, redigido pela convenção dirigida pelo antigo Presidente
francês Valery Giscard d'Estaing.
O conteúdo da Constituição, o processo pelo qual foi preparada, o modo como
funcionou a convenção, o comportamento dos seus membros, tudo mostrou o limite
inaceitável de falta de legitimidade democrática a que chegou o processo de
decisão europeu. A esmagadora maioria dos portugueses e dos europeus não
debateu, não foi consultado, não delegou poderes no grupo de pessoas que
prepararam um texto que, pela sua natureza, será o cume do ordenamento jurídico
europeu, vinculando as constituições nacionais.
O grupo de membros da convenção portuguesa foi escolhido pelo Parlamento e pelo
Governo, a que se acrescentam os membros portugueses do Parlamento Europeu, que
não têm um mandato nacional. Conhecendo-os bem, sei que são pessoas dedicadas e
esforçadas no seu trabalho e conheço os pontos de vista europeus de alguns
deles, mas não de todos. Mas sei igualmente que na convenção se representam a si
próprios e que as posições que aí tomam não têm qualquer legitimação
democrática. Não foram eleitos com qualquer programa europeu, a Assembleia da
República não discute e vota as suas posições, e por isso estamos todos
dependentes das suas inclinações individuais. É verdade que os nossos "convencionalistas"
(o nome que com "wishfull thinking" se dão a si próprios) têm participado em
muitos colóquios, mais ou menos académicos e institucionais, já em bem menos
debates contraditórios, mas isso está longe de dar qualquer caução democrática
às posições que tomam. Também é verdade que alguns deles se esforçaram ao máximo
para dar a conhecer o que se passa na convenção, encontrando uma barreira de
indiferença generalizada, a começar pela própria Assembleia da República, e nos
"media", para quem a questão europeia pouco ou nada interessa, salvo honrosas
excepções.
O caso do representante do Governo, Êrnani Lopes, é diferente. O que diz, o que
escolhe ou recusa, as intervenções que faz na convenção têm bastante mais
sentido e legitimidade, dado que ele "representa" um governo que será julgado
eleitoralmente também pela sua condução dos assuntos europeus. As posições do
Governo são sumariamente conhecidas, em particular sobre os problemas
institucionais da União Europeia. Não é por acaso que Êrnani Lopes tem sido o
membro português da convenção com as mais críticas e duras declarações públicas
sobre o seu funcionamento e sobre o jogo de poderes que aí se trava.
A indiferença generalizada para com os trabalhos da convenção não me surpreende.
Ninguém acha que uma Constituição Europeia seja minimamente necessária e existe
uma suspeita generalizada sobre os motivos que deram origem à convenção, em
particular o de, a pretexto do alargamento e da reforma institucional, se
obterem soluções de directório que imponham desigualdades entre as nações da UE.
Para além destes motivos pouco transparentes, a Constituição teve o apoio
entusiástico dos europeístas federalistas, que têm a ambição de criar um "país"
europeu, com crescente predomínio de instituições europeias supranacionais sobre
os Estados soberanos. Há por isso motivações diferenciadas, que convergem e
divergem aos sabores dos diferentes artigos do projecto constitucional. Há porém
uma coisa em comum: todos vêem com enorme suspeição o reforço da legitimidade
democrática do processo europeu, temem as consultas populares e os referendos,
assim como o reforço dos poderes em matérias europeias dos parlamentos
nacionais, como o Diabo da cruz.
O modo como a convenção correu e corre é preocupante deste ponto de vista. Na
sua proposta inicial, esperava-se que a convenção estivesse no centro de um
grande debate europeu, arrastado pela maior "democraticidade", diziam, de um
processo que deixava de ser feito por embaixadores em segredo, para ser feito
por deputados em público. Esse efeito de arrastamento nunca existiu e o debate
foi tanto ou menor do que se fossem embaixadores a elaborar um tratado "in
camera". Os "convencionalistas" naturalmente voltaram-se para dentro e lá dentro
o Presidente Valery Giscard d'Estaing impôs métodos "sui generis" de
procedimento, absurdos para aquilo que se vangloriava de ser um mini-Parlamento
Europeu constituinte. Não se votava, mas decidia-se por "consenso", um bizarro
método democrático que implica a homogeneidade total dos membros da convenção -
o que a existir revelaria a pouca representatividade da sua composição - ou uma
falsificação amalgamada das diferentes opiniões. O método autocrático de
condução dos trabalhos de Valery Giscard d'Estaing aponta para a segunda
hipótese. O Presidente, quando é patente que não há "consenso", ou faz que não
ouve os dissidentes, desliga a tradução ou, se estes falam em francês, começa a
conversar com os membros da mesa. Quando não pode de todo ignorar o que se
passa, diz que a sua posição é a que tem o "consenso" demográfico, ou seja, é
apoiada pelos maiores estados da UE. Só mesmo agora, no final dos trabalhos, é
que esta versão singular do plural majestático admite que talvez, talvez haja
nalguns pontos versões contraditórias a levar a apreciação do Conselho.
Eu sou europeísta, defendo uma UE juntando pelos seus interesses comuns as
nações livres e soberanas, indo tão longe quanto seja a vontade comum de
governos e povos. Mas o meu cepticismo europeu tem aumentado em relação directa
com o conhecimento testemunhal do modo como actuam as instituições europeias.
Acho, em particular, que se anda há tempo de mais a brincar com a legitimidade
democrática do processo europeu e a abandonar o método dos "pequenos passos" de
Monnet a favor de uma corrida para o vazio. Há muito tempo que defendo o
referendo para qualquer alteração de fundo dos tratados, e esta Constituição é
disso um típico exemplo. Não remedeia muitos dos males já praticados, porque
haverá a tentação do facto consumado, mas pelo menos permite a discussão que não
houve até agora.

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