Ecclesia - 29 Mai 03
Por uma Constituição que respeite e relance a alma da Europa
1. O trabalho da Convenção Europeia em ordem à elaboração de um projecto de
Tratado Constitucional da União Europeia, que está prestes a concluir-se,
oferece uma inédita oportunidade de repensar os objectivos desta União,
as suas estruturas e os princípios em que assenta. Aos
cidadãos e cidadãs europeus em geral, e às instituições
da sociedade civil das várias nações europeias, tem sido
dada também a oportunidade de participar neste trabalho.
Não podemos, porém, deixar de reconhecer que, lamentavelmente, esta
oportunidade de participação e debate não tem sido cabalmente aproveitada
entre nós. Neste contexto, a Comissão
Nacional Justiça e paz vem dar um seu contributo,
procurando salientar alguns aspectos que lhe parecem mais relevantes no
plano dos princípios fundamentais, abstendo-se de entrar em questões mais
específicas, de ordem política ou técnico-jurídica, que escapam ao seu
campo próprio de actuação.
2. A questão que se nos afigura decisiva prende-se com a necessidade de
construir o projecto de unidade europeia em tomo de valores éticos e
culturais partilhados pelos povos europeus. Ou, como já várias vezes foi
referido, a necessidade de dar uma alma à Europa. Este projecto tem sido
até aqui encarado sobretudo como uma agregação de
interesses económicos. Os "pais fundadores" da União
Europeia, de modo pragmático, optaram por criar
interdependências económicas que impedissem de facto a repetição dos
conflitos bélicos passados, e neste aspecto tiveram êxito. Mas, desde o
início, aspiravam a uma coesão e a uma unidade com alicerces mais
profundos.Jean Monet afirmou um dia que, para construir mais solidamente o
projecto europeu, deveria ter começado pela cultura...
Só uma União Europeia assente em princípios, valores e convicções permitirá
ultrapassar divergências de interesses nacionais em função de um bem
comum mais amplo. E só assim tal projecto poderá
mobilizar a adesão e o entusiasmo de todos os europeus (o
que - deve reconhecer-se - nem sempre tem sido
conseguido, se atendermos, por exemplo, aos níveis de abstenção em eleições
europeias). o desafio de um novo alargamento toma particularmente
oportuno e necessário este reforço de coesão assente em
valores. É que com esse alargamento (como em menor medida
também sucedeu aquando do alargamento que conduziu à
adesão de Portugal) será muito mais acentuada a heterogeneidade
dos Estados membros, no que se refere aos índices de desenvolvimento
sócio-económico e às experiências históricas recentes. Por
isso, há que saudar a declaração do artigo 20 do projecto de Tratado
Constitucional da União Europeia segundo o qual esta se funda nos valores
do respeito da dignidade da pessoa humana, da liberdade,
da democracia, do Estado de Direito e do respeito dos
direitos humanos, visando a construção de uma sociedade
pacífica que põe em prática a tolerância, a justiça e a
solidariedade.
O desafio que se coloca à União Europeia, e a todos os europeus, é o de
descobrir e concretizar as implicações destes valores.
3. Destacamos desde já, e por um lado, o princípio, característico do
constitucionalismo moderno, do reconhecimento e protecção dos direitos
humanos, corolário e reflexo da dignidade da pessoa humana.
Trata-se de um princípio com uma fundamentação e
validade supra-estadual, isto é, de um princípio que
vincula o próprio Estado, ou a comunidade de Estados,
princípio que estes não criam, mas apenas reconhecem. Não
podemos deixar de salientar que essa fundamentação não pode, para nós,
desligar-se da imagem bíblica da pessoa humana criada à imagem e
semelhança de Deus, com quem o próprio Deus se
identifica, em especial quando estão em causa os mais
fracos e indefesos «De qualquer modo, ainda que possam
divergir quanto à fundamentação, há, no plano prático, um espaço amplo de
convergência entre todos os europeus quanto à validade deste princípio.
De entre os direitos humanos fundamentais, a proeminência cabe ao direito à
vida, pressuposto de todos os outros direitos. É de aprovar a posição de
pioneirismo no plano mundial que a Europa vem assumindo no que se refere
à pena de morte. Importa, porém, estender a tutela da
vida a todas as suas vertentes sem excepções.
4. Para além dos direitos de liberdade e participação política, importa dar
relevo aos direitos sociais, expressão de um princípio de solidariedade
que também é um dos valores em que se funda a União
Europeia. Há, pois, que preservar e consolidar os
princípios em que assenta o chamado "modelo social
europeu".
O "modelo social europeu" pode ser objecto de correcções, aperfeiçoamentos
ou adaptação às exigências das transformações económicas mais recentes,
mas sem que sejam atingidos os valores de solidariedade
em que assenta.
A solidariedade traduz-se em objectivos de coesão económica e social que
atenuem os desníveis de desenvolvimento e, por razões de coerência,
também deverá reflectir-se na política de cooperação
externa da União Europeia. A este respeito, há que
reconhecer que nem sempre as políticas dos Estados
membros têm correspondido às expectativas geradas ou mesmo aos compromissos
assumidos (em relação à maior parte desses Estados, está longe de ser
atingido, por exemplo, o objectivo de afectação de 0,7% do P .I.B. à
ajuda pública ao desenvolvimento).
A este objectivos de cooperação também não podem ser alheias, por outro
lado, as políticas de imigração. A
solidariedade deve estender-se também às gerações futuras e a esta luz
deve ser encarada a protecção do ambiente e a promoção do desenvolvimento
sustentável.
A União Europeia com esta dimensão social pode ser vista como alternativa à
globalização económica desregulada, procurando harmonizar a liberdade
económica com objectivos de justiça social e protecção do ambiente. Pode,
por isso, ser um modelo para experiências de integração económica que vão
surgindo noutros continentes.
5. As discussões em tomo do projecto de Tratado Constitucional abarcam
também o modelo de articulação institucional da União Europeia e de
repartição de competências entre esta e os Estados membros. Não nos cabe
tomar opções concretas neste âmbito, mas apenas relembrar alguns
princípios do pensamento social cristão que poderão de
algum modo iluminar essas opções concretas.
Um deles é o da exigência de prossecução do bem comum, que se traduz neste
caso num bem comum especificamente europeu. A construção europeia não
pode basear-se num simples jogo de força entre interesses
nacionais permanentemente em confronto. Há que superar
uma visão estreita desses interesses e alargar o
horizonte na perspectiva do bem comum europeu, que em
última análise se compatibiliza com uma visão mais alargada do próprio
interesse nacional. Por outro lado, como vem
sendo reconhecido pela ordem jurídica europeia e é
reconhecido pelo projecto de Tratado Constitucional, o princípio da
subsidiariedade, que encontra raízes no pensamento social cristão, pode
ser a chave para uma repartição equilibrada de
competências entre a União Europeia e os Estados membros,
que harmonize as exigências do bem comum europeu e a
preservação da riqueza que representam as especificidades
nacionais.
A este respeito, importa sublinhar que a União Europeia não pode ser vista
como inimiga dos valores mais preciosos de muitas das culturas nacionais
europeias, o que poderia acentuar ainda mais o divórcio entre ela e os
cidadãos e cidadãs europeus. Os valores comuns que podem mobilizar as
pessoas e povos europeus não agridem as culturas nacionais, antes as
valorizam, e são amplamente consensuais, unem e não dividem. Por isso,
não deverá assumir enquanto tal em âmbitos internacionais
posições em matérias delicadas de relevância
ético-cultural (como o aborto ou a definição de família e
o seu estatuto) que não sejam, neste aspecto, consensuais.
De acordo com o princípio da subsidiariedade, uma
sociedade de ordem superior não deve absorver ou suprimir
as iniciativas e competências de uma sociedade de ordem
inferior, mas antes apoiá-la e coordenar a sua acção com
a de outras sociedades em ordem ao bem comum. As competências da sociedade
de ordem superior limitam-se aos domínios em que, na perspectiva do bem
comum, os objectivos em causa são atingidos de forma mais perfeita e
completa do que o seriam num plano inferior. Valoriza-se, assim, a
descentralização e a proximidade entre o poder e as pessoas.
6. Impõe-se, por último, uma referência à abertura da Europa ao mundo. Não
será aceitável a ideia de uma Europa como "fortaleza" ou como "ilha de
paz e prosperidade" alheia ao mundo turbulento que a
rodeia. A unidade europeia deve, pelo contrário, ser
vista como antecipação de uma unidade mais vasta e de
alcance verdadeiramente universal. Daí a
importância da efectiva implementação de uma política externa europeia
comum. As divisões manifestadas a propósito da recente guerra no Iraque
revelam a inexistência dessa política, mas, ao mesmo tempo, a lacuna que
essa inexistência representa no mundo de hoje. .
A política externa europeia há-de inspirar-se nos valores que estão na base
da própria União Europeia. Entre estes contam-se os valores democráticos
que' também inspiram a Aliança Atlântica, aliança que importa preservar.
Mas esta aliança pressupõe uma ordem internacional regida
pelo Direito e pela Carta das Nações Unidas. O primeiro
ataque a essa aliança vem da parte de uma visão da ordem
internacional regida pela força hegemónica de uma
superpotência que se considera acima do Direito.
A política externa europeia poderá evitar uma ordem internacional unipolar e
permitir ainda que a Europa sirva de ponte entre o Ocidente e outras
áreas do mundo com as quais ela mantém laços históricos e
que nesse mundo unipolar correriam particulares riscos de
marginalização: a África, a América Latina, o mundo
árabe. Será de recordar, a este propósito, que já a primeira
declaração oficial do projecto de unidade europeia, a "Declaração Schuman",
fazia referência ao desenvolvimento do continente africano como uma
tarefa da Europa. Esse é um desígnio a que Portugal, por
razões históricas, se sente também particularmente
ligado.
A União Europeia nasceu da exigência de que não viessem a
repetir-se as dramáticas experiências das guerras
ocorridas em solo europeu na primeira metade do século XX.
A experiência da construção da unidade europeia é um belo
exemplo de inversão de uma tendência histórica marcada pela guerra.
Povos que se guerrearam ao longo dos séculos protagonizam hoje um projecto
de unidade política. Por isso, e em coerência, uma política externa
europeia comum não pode deixar de servir a causa da Paz,
uma Paz que, de acordo com a visão do Papa João XXIII, se
alicerça na liberdade, na verdade, na justiça e no amor.
7. As referências de João Paulo II à necessidade de reconhecer e reavivar as
raízes cristãs da cultura europeia devem ser vistas nesta perspectiva:
como um contributo para reforçar a Europa dos valores e
para dar uma alma à Europa.
Não se trata, obviamente, de pretender reproduzir modelos do passado (de
resto, porque esses modelos nunca corresponderam a uma tradução fiel da
mensagem cristã na sua pureza), nem de construir uma Europa que
marginalize os não cristãos. Nem se trata (como muitas
vezes sucedeu no passado) de uma simples opção
identitária, em antagonismo com outras, que não se traduza
depois em comportamentos coerentes com os valores cristãos. Hoje,
reconhecer as raízes cristãs da cultura europeia é também
um desafio e uma responsabilidade, que implicam essa
coerência que muitas vezes faltou no passado. E essa
coerência exige a valorização do diálogo de culturas na
perspectiva da fraternidade universal. Afirmou João Paulo 11, em 20 de Junho
de 2002, a um congresso sobre a Constituição Europeia: «Sem
ceder a qualquer tentação de nostalgia, e também sem nos contentarmos
com uma reprodução mecânica dos modelos do passado, mas abrindo-nos aos
novos desafios presentes, deveremos, pois, inspirar-nos, com uma
fidelidade criativa, nas raízes cristãs que marcaram a
história europeia. É a memória histórica que o exige, mas
também, e sobretudo, a missão da Europa, chamada, também
hoje, a ser um exemplo de progresso verdadeiro, a promover a
mundialização na solidariedade e sem exclusão, a contribuir para a
edificação de uma paz justa e duradoura, no seu seio e no mundo inteiro,
a juntar tradições culturais diferentes para dar vida a
um humanismo no qual o respeito pelos direitos, a
solidariedade e a criatividade permitam a cada homem
realizar as suas mais nobres aspirações. (...)
É, de facto, urgente e necessário mostrar - com a força de argumentações
convincentes e de exemplos atraentes - que edificar a nova Europa fundada
nos valores que a modelaram ao longo de toda a sua história e que têm as
suas raízes na tradição cristã é vantajoso para todos, seja qual for a
tradição filosófica ou espiritual a que pertençam, e constitui o
fundamento sólido para uma convivência mais humana e mais
pacífica, porque respeitadora de todos e de cada um.»
A construção europeia e, por maioria de razão, a futura Constituição
Europeia não podem, pois, ser pensadas com referência a modelos do
passado, nem em arranjos de conveniência. Exigem um
projecto mobilizador dos cidadãos europeus, claramente
referenciado a princípios, valores e convicções que
constituem a alma de uma Europa que se quer um espaço de liberdade, justiça,
paz, solidariedade, um espaço promotor dos direitos humanos. É essa
Europa que se quer espelhada na sua Constituição.
Lisboa, Maio de 2003
Comissão Nacional Justiça e paz

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