Democracia e competência António Barreto Retrato da Semana
É longa a lista de investimentos públicos com
política a mais e estudo a menos, com muita
demagogia e pouca ciência
O"manifesto" dos economistas, propondo um período de
reflexão sobre os grandes projectos de obras
públicas, foi bem aceite. O que sugerem é razoável.
Nada acrescentou ao que muitos, incluindo eles
próprios, vêm dizendo há meses. Mas, desta vez, o
facto assume nova dimensão. Na verdade, fizeram-no
em conjunto, em papel escrito e assinado, com um
suplemento de responsabilidade. São treze antigos
ministros do PS e do PSD: oito das Finanças, dois da
Economia, dois da Indústria e um da Agricultura.
Quase todos professores universitários. Sem
demagogia, fazem o diagnóstico severo da economia e
das finanças. Pedem seriedade e rigor. Alertam para
a hipoteca que, graças ao endividamento, pesa sobre
as gerações futuras. Propõem uma avaliação dos
grandes investimentos. Sobre os fundamentos desta
tomada de posição, pouco há a dizer. O governo
deveria ouvi-los, ler o "manifesto" com atenção e
seguir o que eles dizem. Sem orgulho, nem machismo.
Sem teimosia, nem cruzada do tipo "Incineradora".
Consta, aliás, que é a operação em curso neste
fim-de-semana: suspender o TGV e outras grandes
adjudicações. É, evidentemente, o resultado das
eleições europeias e a proximidade das legislativas.
Mas também é um alívio. Sem dinheiro, inseguro
quanto às decisões e temendo a ratoeira da sua
propaganda, o governo queria pretextos para
suspender. Entre o esforço de parecer um falso
devoto de doçura e diálogo e a leitura atenta deste
"manifesto", o governo encontrou a saída.
Omais interessante é o acto
em si próprio. Tem todo o aspecto de ser um gesto de
"profissionais sérios". De "gente competente". De
professores honestos e isentos, preocupados com o
interesse público. Parece e é. Mas faz logo pensar
num velho fantasma: o do governo das competências.
Por que razão não são estes homens responsáveis por
decisões de grande envergadura? Por que não estão
todos, ou quase todos, no governo ou no Parlamento?
Por que motivo os ministros e os deputados não os
ouvem? Será que os competentes se querem substituir
ao governo e aos políticos?
A ideia do "governo dos competentes" é velha. Vem do
século XIX. Andou pela Europa e passou por França e
Portugal. Entrou, viva, nas primeiras décadas do
século XX. De vez em quando emerge. É sempre uma
ideia antidemocrática. Pressupõe que a democracia,
interessada nos votos e especializada em demagogia,
não é capaz de chamar a si as competências técnicas.
Traduz a sensação de que os políticos, preocupados
exclusivamente com o curto prazo, tomam decisões no
seu interesse e no dos seus partidos, não a pensar
no país, nem no longo prazo. Finalmente, implica a
crença em que a decisão política é vulnerável à
corrupção ou a interesses menos lícitos.
Há aqui verdade. Mas também falsidade. Muitos
políticos são ou foram técnicos. Muitas decisões
técnicas podem estar erradas. Os técnicos não são
invulneráveis à corrupção ou aos interesses
particulares. Mais importante é o problema da
responsabilidade. A dos técnicos será eventualmente
perante os seus pares, nunca é perante a população.
No entanto, é verdade que os motivos pelos quais os
políticos decidem não têm sempre como fundamento as
razões técnicas. Mesmo o ditador do Estado Novo
percebeu que a decisão puramente política tinha as
suas insuficiências. O antigo Conselho Superior de
Obras Públicas foi uma resposta a essa preocupação.
Ora, o regime democrático procedeu, gradualmente, a
um esvaziamento técnico e científico dos seus
processos de decisão. Os pareceres científicos e
desinteressados, as avaliações técnicas e o conselho
fundamentado foram paulatinamente afastados. As
opiniões que interessam são as que apoiam a decisão
política previamente tomada. Chamam-se grandes
consultoras internacionais e agências de todo o tipo
a quem se pede que fundamentem uma decisão, não que
estudem várias e sugiram a melhor. Requisitam-se os
serviços de escritórios de advogados e de empresas
de consultoria a quem se encomendam e pagam
substancialmente estudos que confirmem o que os
políticos querem. Agências, escritórios e
consultores têm o seu interesse primordial que é o
de fazer negócios e serem escolhidos pelos governos
para essas tarefas justificativas. Pior ainda: a lei
que regula a selecção e a nomeação dos altos
funcionários da Administração Pública, aprovada por
quase todos os partidos, é o mais legal e eficaz
instrumento de subalternização da competência e de
consagração de fidelidade partidária como factor de
decisão. Legalmente, os mandatos dos
directores-gerais e outros funcionários superiores
terminam com as eleições e com o fim da legislatura.
Um novo governo tem total poder para demitir e
nomear quem quiser, da "sua confiança política", diz
a lei. Enquanto este sistema durar, a competência
técnica é um argumento menor.
Os autores deste oportuno "manifesto" não defendem o
"governo das competências". Eventualmente, dizem que
a competência técnica deve ser associada à decisão
democrática. A responsabilidade pelas decisões, por
mais sérias e graves que sejam, pertence aos
políticos que devem prestar contas perante a
população. Mas isso não se faz sem que haja
informação suficiente para toda a gente interessada.
O que não é o caso em Portugal. E isso também não
deve dispensar o recurso à inteligência, ao estudo
técnico e científico, à competência profissional e
ao juízo isento. O que é raro em Portugal. De
Alqueva a Sines, do aeroporto ao TGV, de algumas
barragens à ferrovia, das auto-estradas aos
estaleiros navais, das SCUT às redes de fibra óptica
e dos bairros sociais aos metropolitanos: é longa a
lista de investimentos públicos mal concebidos, mal
estudados, com política a mais e estudo independente
a menos, com muita demagogia e pouca ciência. A
legislação é medíocre. Quase todos os diplomas
legais têm de ser corrigidos nos dias ou semanas que
sucedem à publicação. Há códigos de direito, que
deveriam durar alguns anos, mas que são corrigidos
dias depois da aprovação. As leis da Assembleia e os
decretos-leis do governo têm estudos a menos, contas
malfeitas, justificações dogmáticas e a investigação
sobre as consequências a prazo é praticamente
inexistente. Em suma, tanto o processo de feitura
das leis como o método de tomada de decisões
traduzem esta inegável realidade: no nosso país, a
democracia é incompatível com a competência técnica
e a ciência.
É realmente difícil viver em democracia em Portugal.
É por isso que a aspiração democrática é tentadora.
É difícil que a democracia, em Portugal, conviva com
a seriedade. É por essa razão que a democracia é
aliciante.