Atribulações de um chinês fora da China João César das Neves
Honorável primo Chu Agradeço a carta e as notícias.
Espero que tudo continue bem aí em Beijing. Como
passa a tia Ma? Por cá as coisas andam prósperas.
Com os estrangeiros daqui em crise, é bom para a
nossa loja e restaurantes.
Quanto às perguntas que me faz acerca dos
ocidentais, tem toda a razão em estar preocupado com
os Jogos Olímpicos que se aproximam. Tenha muito
cuidado, porque os narizes compridos só dizem
mentiras. Falam muito em liberdade e querem ensinar
a todos o que ela é, mas só conhecem as liberdades
que não interessam. Faltam-lhes as realmente
importantes.
Andam muito orgulhosos por poderem escolher os
chefes e dizer mal deles. Como acham que nós não
dizemos, consideram-nos oprimidos. Mas não têm
liberdade para vender, comer, guiar, despejar lixo e
mil outras coisas. É proibido fumar cigarros, cortar
árvores, fazer barulho. Vendem só a certas horas e
em certos sítios. Não se pode trabalhar à noite ou
quando se é velho. Nem imagina o que eles exigem
para se andar de carro (por exemplo, um colete
verde!!). Proíbem muitas comidas, das nossas ou
mesmo das que eles sempre comeram. Ficam fulos se
não dividimos o lixo. Até querem controlar a maneira
como se escreve. Tudo tem regras, imposições,
limites. Sobretudo papéis. Muitos papéis. Chamam a
isto progresso e liberdade.
O Fu diz que a vida na terra dos narizes grandes é
como a que tínhamos no tempo do Camarada Mao. Eu
achava exagero (sabe como é o primo Fu...) mas um
dia vi que tinha razão. Vieram ao restaurante alguns
guardas vermelhos armados. Diziam ser fiscais da
economia, mas senti aquele mesmo medo da revolução
cultural. Viram tudo, inventaram multas por nada,
ralharam e levaram preso o tio Deng.
Como no tempo do Camarada Mao, os ocidentais passam
horas em doutrinação política. Aqui é em frente à
televisão. Um deles disse- -me que era muito
diferente da China, porque não é doutrina, mas
notícias e debates (exactamente como lhe chamavam os
comissários do povo), e porque se pode escolher
aquilo que se ouve. Ao princípio acreditei, mas
depois vi que não há escolha. Todos dizem o mesmo. E
querem eles ensinar-nos liberdade!
Como vai ter narizes grandes em Beijing, precisa
conhecê-los. Diz-se que só pensam em dinheiro, mas
isso também nós. A diferença é que, além da tal
liberdade, eles adoram três coisas: papéis, saúde e
sexo. Quando aos papéis, já lhe expliquei: há papéis
para tudo. Não sei se foi boa ideia termos-lhe dado
essa nossa invenção. Depois andam sempre
aterrorizados com a saúde. Gastam imenso dinheiro em
médicos e remédios, mesmo quando não estão doentes.
Para eles tudo -comida, sexo, trânsito, desporto- é
um problema de saúde. Andam loucos com o corpinho.
Depois morrem como toda a gente.
Quando não é papéis ou médicos, é sexo. A coisa que
mais os cega é sexo. Aqui as mulheres deles andam
quase nuas na rua (cuidado com as primas!!). Cega-os
porque não o entendem. O sexo deles não é para ter
filhos, mas para vender sabonetes. Não é para ter
família e ser feliz, mas para trair, zangar, ter
sarilhos. Chamam-lhe liberdade, claro!