Público - 23 Jun 08

 

No reino do absurdo
Francisco Sarsfield Cabral

 

O novo regime de arrendamento falhou. Mas o Governo não parece decidido a atacar a raiz do problema, ficando-se pelas 'aspirinas'

 

Em Portugal há 50% mais habitações do que famílias. Mais de meio milhão de casas estão devolutas. No entanto, temos 40 mil famílias a necessitarem de alojamento urgente, 190 mil casas precisam de obras (porque a reabilitação habitacional entre nós é mínima) e meio milhão de fogos estão sobrelotados.
Actualmente existem apenas 750 mil casas arrendadas (havia um milhão em 1980), enquanto 2,7 milhões de famílias são proprietárias das casas onde habitam (1,6 milhões em 1980). Uma proporção muito acima do habitual noutros países europeus. É certo que, entre 2006 e 2007, os novos contratos de arrendamento subiram 30%, mas a partir de uma base baixíssima.

 

Como há escassa oferta de casas para alugar, os seus proprietários pedem rendas muito altas. Assim, a solução para arranjar casa é um empréstimo hipotecário para a comprar. Foi o que fizeram mais de um milhão de portugueses, incentivados pelas baixas taxas de juro trazidas pela entrada de Portugal no euro.
Hoje, com os juros a subirem, muitas famílias estão com a corda na garganta. Mas o crédito à habitação continua a crescer, apesar de mais caro, pois parece não haver outra saída. E aqueles que não têm possibilidade de obter um empréstimo, por falta de meios? Esses, naturalmente os mais pobres, vivem em barracas, em quartos exíguos ou na rua.

 

Entretanto, a degradação das casas desertificou o centro das cidades e cercou-as de dormitórios de fraca qualidade urbanística. A deslocação da população para as periferias urbanas levou à subida do tempo e do dinheiro gastos no transporte. Os engarrafamentos de trânsito aumentaram exponencialmente, tornando um inferno a vida quotidiana de muita gente.

 

A não actualização razoável das rendas antigas é também um obstáculo à mobilidade dos trabalhadores. Quem, pagando uma renda antiga, e por isso baixa, numa casa numa cidade, aceitará ir viver e trabalhar noutra cidade, num emprego mais bem remunerado, se tiver de pagar dez ou 20 vezes mais por uma nova habitação?

 

Esta situação absurda agrava-se desde há décadas. No entanto, os governos ainda não actuaram para pôr termo à injustiça social e ao desperdício de recursos que a situação habitacional portuguesa significa.

 

No Governo de Durão Barroso foi elaborado um projecto de lei do arrendamento que enfrentava os problemas. Mas não houve, então, coragem para o tirar da gaveta. Honra lhe seja, o Governo de Santana Lopes avançou com o projecto, em 2003, mas não teve tempo de o levar à aprovação parlamentar.

 

Depois, o Governo de Sócrates fez aprovar um novo regime, tão pesado e burocrático que logo se viu não ir resultar, como não resultou. Menos de dez mil rendas antigas (e ridiculamente baixas) foram actualizadas com o novo regime. Mas o secretário de Estado Eduardo Cabrita dizia ao Expresso a 3 de Agosto do ano passado: "As medidas que tomámos estão a produzir resultados magníficos."

 

Agora, parece que alguém se deu conta de que a realidade é bem diferente. Um grupo de técnicos apresentou um Plano Estratégico para a Habitação, que foi bem recebido em meios governamentais. A ideia (imagine-se!) é a de que importa estimular o arrendamento em detrimento da compra de casa. Para isso sugerem-se benefícios fiscais e outros apoios a quem alugue casa para habitar. Ajudas que se poderão revelar-se úteis, mas não passam de uma gota no oceano.

 

O Plano até inclui uma proposta meritória: deixar de construir bairros sociais, que se têm transformado frequentemente em ghettos onde se fomenta a droga e a criminalidade, passando o Estado a apoiar directamente as famílias que não conseguem ter casa.

 

Só que continua a evitar-se resolver, a sério, o problema central das rendas antigas e degradadas - problema que muitos dos nossos parceiros na União Europeia resolveram em devido tempo. O que implicaria uma actualização gradual e realista das rendas antigas, com apoios aos inquilinos sem meios para pagarem os aumentos.

 

Alugar casa seria a solução racional para a maioria dos portugueses, que não possuem meios financeiros bastantes para pagar os custos elevados da habitação em Portugal, comprando. Para usar um termo técnico, não são "solventes". Enquanto não se actuar em função desta evidência, continuará o reino do absurdo. Jornalista