Um Estado refém das dívidas que acumula Paulo Ferreira
O aumento dos preços dos medicamentos mostra como os
governos precisam de ter as contas em dia
O que leva um governo a violar o seu compromisso de
não aumentar os preços dos medicamentos (que estão
sujeitos a aprovação prévia de organismos do Estado)
até 2009, numa altura em que os consumidores já não
suportam ouvir falar de aumentos de preços?
Descartando a hipótese do masoquismo, característica
que este Governo não possui, só uma razão muito
forte pode ter levado ao aumento de 121 produtos
farmacêuticos. E esse motivo incontornável foi
confessado pelo próprio secretário de Estado da
Saúde, Francisco Ramos: foram as próprias
farmacêuticas que impuseram esses aumentos,
ameaçando retirar os produtos do mercado, se o preço
não subisse. E, perante isto, o Governo viu-se
obrigado a negociar quais e quanto passariam a
custar mais ao doente.
O que o secretário de Estado não disse, mas a
próprias farmacêuticas se apressaram a recordar, é
que a dívida do Estado ao sector é neste momento
superior a 700 milhões de euros. Um montante elevado
que resulta essencialmente de fornecimentos a
hospitais públicos serem pagos muito para lá dos
prazos contratados.
O número não aparece por acaso e ajuda-nos a
perceber por que é que o Estado está permanentemente
refém de algumas indústrias.
Neste caso, são as farmacêuticas que, vendo-se a
obrigadas a financiar os cofres públicos de uma
maneira abusiva, têm capital de queixa para obrigar
os sucessivos governos a compensar noutros
tabuleiros as dívidas que vão sendo acumuladas.
Mas também podíamos estar a falar das farmácias, que
são crónicas financiadoras do Estado nas
comparticipações dos medicamentos. Uma dívida que
chegou a tal ponto que fez medrar uma Associação
Nacional de Farmácias à custa do seu papel de
mediador financeiro entre o Estado e as suas
associadas. Nasceu aí o grupo empresarial que a ANF
é hoje e o poder com que o seu presidente, João
Cordeiro, tem neutralizado sucessivos governos
quando chega a hora de legislar sobre o sector.
Outro sector que financia cronicamente o Estado é,
obviamente, o das construtoras. Há mesmo rankings
das câmaras municipais que mais devem ou que mais
meses ou anos se atrasam nos pagamentos.
Quando se fala da questão das dívidas do Estado a
fornecedores, um valor global que andará entre os
dois mil e os três mil milhões de euros (próximo de
1,5 por cento do produto anual da economia
portuguesa), coloca-se geralmente o problema na
asfixia financeira que esses montantes representam
para milhares de empresas. E esse problema é real, é
grave e devia ser rapidamente corrigido.
Pagar a tempo e horas não é só uma questão da mais
básica honestidade da parte de um Estado que
persegue desproporcionalmente contribuintes por
dívidas ridículas. É também uma forma de injectar
dinheiro na economia, agilizando uma cadeia de
pagamentos com prazos terceiro-mundistas que colocam
mal o país em qualquer comparação internacional.
Mas pagar as dívidas a fornecedores é ainda outra
coisa muito importante: dá espaço aos governos e aos
autarcas para definirem políticas e tomarem decisões
podendo olhar nos olhos os que fiquem desagradados
com elas.
Como vimos esta semana com o exemplo dos
medicamentos, isso não acontece quando um secretário
de Estado se senta para negociar com o sector
farmacêutico ao qual o Estado deve milhões. Ou
quando um autarca tenta recusar trabalhos a mais
numa empreitada feita por uma construtora que ainda
não recebeu o pagamento das últimas obras que
concluiu para o município.
Um Estado que deve desta forma escandalosa não é um
Estado livre. Não é um Estado com capacidade nem
moral para definir as suas políticas e as impor a
agentes privados, se for caso disso. Só para
recuperar a liberdade de decidir vale a pena
ponderar formas extraordinárias de pagar as dívidas
que o Estado deixou acumular para lá de todos os
prazos admissíveis.