Público - 05 Jun 08

 

A questão religiosa
Manuel Brás

 

Quando apresentou o conteúdo da nova lei que facilita o divórcio, o Governo apressou-se a garantir que não pretendia criar, ou recriar, uma questão religiosa. Curioso, porque o Governo usou como pretexto para essa alteração números de casamentos católicos dos últimos 40 anos, que interpretou como uma perda de influência da Igreja na sociedade portuguesa. Ora, se a Igreja perdeu influência, quem é que a ganhou? O Governo? Quando alguém perde influência, há outro alguém que a ganha, pois a influência - o poder - não se recolhe ao vazio. Quando o Governo justifica a legislação que torna ainda mais precária e descartável a instituição casamento, baseado na proclamada perda de influência da Igreja, o que é que pretende? Substituir a Igreja? Se isto não é uma questão religiosa, então o que é?

 

O que é que o Governo entende por casamento? Não o definiu. Estará a falar do mesmo que a generalidade dos portugueses? É bem provável que não. A deputada do Bloco de Esquerda bem tinha razão: o Governo podia e devia ter ido mais longe; que cada um se case com aquilo que quiser. Ao fim e ao cabo o assunto há-de voltar à baila na próxima legislatura socialista, com outros contornos...

 

(...) Por que é que o Governo não questiona e avalia os efeitos do divórcio na sociedade portuguesa nas últimas décadas? É o divórcio um bem ou um mal, a prazo, para a sociedade? Não se trata de condenar aqueles que, no fundo, são vítimas do crescente recurso ao divórcio, mas sim de reconhecer que todos os casamentos que se puderem salvar e todos os divórcios que se puderem evitar redundam num bem para as famílias e para a sociedade, e actuar em consequência. A lei aprovada mina a confiança entre as pessoas, desvirtua a palavra dada e a capacidade das pessoas se comprometerem, permitindo o divórcio de ânimo leve. Aliás, até é contraditória com o conceito de casamento. Se é assim, para quê casar?

 

A tentativa, por um lado, de precarizar e tornar descartáveis os casamentos de jure e, por outro lado, equiparar de jure, como casamento, uniões precárias, poderá acabar por transformar o casamento - o que quer que se entenda por isso - em algo não só indefinível como absurdo.

 

Mas, talvez haja, para tudo isto, uma razão obscura de carácter marcadamente ideológico: é que o divórcio é um pilar fundamental do credo republicano, quase uma razão de ser dessa ideologia. Na verdade, a ideologia republicana anda amarrada ao divórcio desde sempre, ao ponto deste constituir uma das suas principais receitas a aviar logo que chegam ao poder. Foi uma das primeiras coisas que fizeram após a implantação da república, ainda em 1910, em 1975 e agora em 2008, para abrilhantar os 100 anos da mesma.