Hábitos de rico e a arte de furtar João César das Neves
A defesa do consumidor justifica hoje miríades de
leis, regulamentos e prescrições. Como todos os
exageros, o resultado é em grande medida
precisamente o oposto, oprimindo o cidadão para
beneficiar alguns interesses instalados.
Desde as regras de construção de edifícios às
imposições do Código da Estrada, das embalagens de
alimentos às características dos brinquedos e aos
limites ao tabaco, a nossa vida desenrola-se sob uma
rede intrincada que alegadamente nos protege a saúde
e bem-estar. Se a isso juntarmos os meritórios
propósitos de promover o ambiente, a eficácia
energética, a democracia, a cultura nacional e
tantos outros fins, vê-se que estamos bem
defendidos.
Em geral esses preceitos são sensatos e convenientes
(embora também os haja tolos e ridículos) e, se
constituíssem recomendações ou conselhos, seriam
contributos preciosos para o tal consumidor. Mas
quando se tornam obrigatórios por lei ou directiva
europeia, puníveis por pesadas multas e coimas,
distorcem e danificam aquilo que pretendem promover.
Na realidade, muitas dessas exigências são formas de
encarecer os produtos, prejudicando aqueles que
dizem beneficiar. Sobrevivemos séculos sem
requisitos hoje indispensáveis.
Por detrás das imposições há uma falácia perversa.
Elas estão ligadas a preocupações que, em geral, os
ricos adoptam voluntariamente, porque têm
possibilidades para isso. Forçando-as a todos, a lei
diz beneficiar os pobres, a quem garante produtos de
qualidade. Mas essas exigêncas pagam-se. As coisas
passam a ser boas, legais e inacessíveis. Impor
hábitos de rico torna todos mais pobres.
Houve tempos em que comprar um carro era para muitos
um sonho irrealista. Agora o rendimento subiu e o
preço desceu. Mas também explodiram as despesas
adicionais impostas ao automobilista: cintos de
segurança, coletes reflectores, seguros
obrigatórios, cadeirinhas para crianças, inspecções
periódicas, gasolina sem chumbo, etc, etc. Para os
ricos, que sempre se esmeram nos extras do
automóvel, isso nada traz de novo. Para muitos
pobres estas coisas mantêm o carro um sonho
irrealista (ou uma actividade fora da lei).
Cada vez que entra num restaurante, o cliente assume
um grande risco. A qualidade, higiene, segurança da
refeição estão confiadas ao profissionalismo e
boa-fé do estabelecimento. A única garantia sólida
do consumidor está no interesse do restaurante em
ser bom, porque disso depende a sua rentabilidade e
sobrevivência. Quando o Estado impõe limitações -
muitas tolas, como a proibição de galheteiros ou
colheres de pau - apenas contribui para encarecer a
refeição, sem adicionar nada de significativo à
protecção do consumidor, que continua totalmente nas
mãos do cozinheiro.
Se essas leis transformam bons conselhos em custos
insuportáveis para os pobres, por que razão são
criadas? A resposta, além da fúria controladora dos
serviços, está no interesse daqueles que realmente
beneficiam com elas. Porque quem ganha com a defesa
do consumidor é o produtor.
Para as fábricas de embalagens alimentares,
exaustores de fumo, livros escolares, caixilharias
de vidros duplos, revestimentos climatizados e
tantos outros, a imposição legal dos seus produtos é
um grande negócio. Garagens de inspecção, companhias
de seguros, médicos de trabalho, estudos de impacto
ambiental, licenciamentos camarários e ministeriais,
enchem os bolsos à sombra dos regulamentos,
atrasando e penalizando a vida aos cidadãos que
dizem defender. E depois ainda vêm advogados e
organizações de consumidores, que vivem de tratar
todas estas obrigações.
Há muitos milénios os bandoleiros da estrada viviam
de saquear mercadores. Quando os nobres legalizavam
a prática, através de taxas e portagens, a capa de
legitimidade mantinha a rapina. Hoje as leis de
protecção dos cidadãos constituem em muitos casos
uma forma serena de pilhagem equivalente ao velhos
assaltos. Já no século XVII o clássico português A
Arte de Furtar ensinava que: "os maiores ladrões são
os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões"
(c. IV).