Agência Ecclesia - 27 Jun 05
Educação da Sexualidade
Nota da
Conferência Episcopal Portuguesa
Nota sobre a Educação da
Sexualidade
1. Recentemente, vieram a
público reacções de um número considerável de pais, professores e outros
cidadãos perante iniciativas no domínio da educação da sexualidade
realizadas em escolas estatais, algumas delas a título experimental por
designação do Ministério da Educação. Em causa está um documento datado
do ano 2000, da responsabilidade conjunta do Ministério da Educação, do
Ministério da Saúde, da Associação para o Planeamento da Família e do
Centro de Apoio Nacional – Rede Nacional de Escolas Promotoras da Saúde,
intitulado “Educação Sexual em Meio Escolar: Linhas Orientadoras”. Os
conteúdos e ideias que se pretendem veicular, as metodologias propostas
e a bibliografia sugerida como base de trabalho, que serviram de suporte
àquelas iniciativas, colidem com a sensibilidade e as convicções do
público referido.
Tratando-se de matéria particularmente delicada e controversa e dada a
pertinência de algumas das questões levantadas, a Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP), no seguimento de posições sobre a sexualidade humana
já anteriormente divulgadas em documentos recentes (1) , apresenta,
agora, uma palavra que se pretende de iluminação do debate e de
orientação e estímulo ao empenhamento dos cristãos, particularmente as
famílias, e dos cidadãos em geral.
2. A sexualidade é um dos núcleos estruturantes e essenciais da
personalidade humana, que não se reduz a alguns momentos e
comportamentos, mas é, pelo contrário, um complexo que se integra no
pleno e global desenvolvimento da pessoa. Tem uma dimensão biológica,
evidente na diferenciação sexual, nos mecanismos de reprodução, no
crescimento e nos ciclos de mudança e aparência física. Tem, também, uma
dimensão psicológica, que se exprime no conjunto de emoções e
sentimentos que proporciona, na sua evolução com a maturidade e a
experiência, na influência sobre o auto-estima, na variedade das suas
expressões afectivas e no sentido em que proporciona segurança e
comunicabilidade interpessoal. Nesta relação se situa a dimensão social
da sexualidade, uma vez que os encontros e desencontros de uma relação
contribuem para amadurecer, em cada homem ou mulher, dinamismos de
doação, de entrega, de abertura aos outros e ao mundo.
Na perspectiva da revelação cristã, “o homem é criado à imagem e
semelhança de Deus, e o próprio Deus é amor. Por isso, a vocação ao amor
é aquilo que faz do homem a autêntica imagem de Deus: ele torna-se
semelhante a Deus na medida em que se torna alguém que ama” (2) .
Entender-se como pessoa humana criada por amor e com a missão de amar é
a premissa essencial para alguém atingir a plenitude da realização
humana. A sexualidade humana, correctamente entendida, tem uma ligação
profunda com o amor e só nele encontra o seu verdadeiro sentido. Desta
ligação resulta o papel central da sexualidade na vida humana, factor
decisivo para o desenvolvimento harmonioso da pessoa que só se atinge no
amor.
É, também, um dado da revelação cristã que o ser humano é homem e
mulher, diferenciados sexualmente, e que se complementam numa relação de
amor. E é na referência a Deus, que é comunhão na unidade trinitária,
que o homem e a mulher encontram o modelo da comunhão perene, ideal
sempre a atingir a partir da vivência quotidiana da sua relação.
Estas características da antropologia cristã, porque radicam na
revelação divina e não resultam de uma qualquer elaboração social ou
cultural, têm o carácter de verdade objectiva. Por isso, constituem para
os cristãos ideal a atingir, pelo esforço educativo e pela acção da
graça de Deus ao longo de toda a vida, e critério indispensável para a
avaliação das diferentes visões e propostas de educação da sexualidade.
A educação da sexualidade não se resume a mera informação sobre os
mecanismos corporais e reprodutores, como tantas vezes tem acontecido,
reduzindo a sexualidade à dimensão física possível de controlar com
vista à prevenção contra o contágio de doenças sexualmente
transmissíveis e o surgimento de gravidezes indesejadas. Desta forma,
deturpa-se o sentido da sexualidade, isolando-a da dimensão do amor e
dos valores, e abre-se caminho à vivência da liberdade sem
responsabilidade, pela ausência de critérios éticos, e à aceitação, por
igual, de múltiplas manifestações da sexualidade, desde o auto-erotismo,
à homossexualidade e às relações corporais sem dimensão espiritual
porque o amor e o compromisso estão ausentes.
“A sexualidade deve ser orientada, elevada e integrada pelo amor, o
único que a torna verdadeiramente humana. Preparada pelo desenvolvimento
biológico e psíquico, cresce harmonicamente e realiza-se em sentido
pleno somente com a conquista da maturidade afectiva, que se manifesta
no amor desinteressado e no dom total de si” (3) . A educação da
sexualidade deve, pois, inserir-se no processo global e contínuo da
formação da pessoa.
3. A família é a primeira comunidade responsável pela educação das
crianças, dos adolescentes e dos jovens. É o lugar privilegiado onde, de
forma vivencial e com o esforço de todos os seus membros, se estabelecem
relações interpessoais, cada um se descobre a si próprio, se desenvolvem
e assumem valores como “a generosidade, a disponibilidade para
partilhar, a compreensão, a tolerância, o perdão, a contínua abertura à
reconciliação, a solidariedade na ajuda mútua, a fidelidade às pessoas e
ao projecto comum, o respeito pela vida e pela dignidade de cada
elemento que integra a comunidade familiar, a intimidade construída na
ternura e na doação” (4) .
Os pais têm o direito e o dever de educar os filhos, inclusive no
referente à sexualidade. O exercício desse direito-dever é anterior à
intervenção de outras instituições, para além da família, designadamente
a escola. Essa responsabilidade, inalienável e insubstituível, envolve o
período da vida dos filhos desde o nascimento à idade adulta.
Os pais são o primeiro modelo dos filhos, educando-os através do seu
comportamento e atitudes e do clima familiar que existe em suas casas,
nomeadamente na relação existente entre o pai e a mãe, e de cada um
destes com cada filho ou filha. Também educam para a sexualidade no
contexto das orientações e pedidos gerais que, habitualmente fazem aos
filhos, desde muito novos, e das respostas às questões e dúvidas que
estes lhes vão apresentando.
Esta tarefa exige dos pais preparação adequada e contínua, de modo a
capacitá-los para o diálogo, em clima de simplicidade e abertura à
comunicação, que permita esclarecimento e orientação dos filhos. Mas,
acima de tudo, espera-se dos pais o testemunho dos valores da
sexualidade, o que implica o esforço permanente por a viverem com
equilíbrio e sentido. Reconhecemos e louvamos a generosidade e a coragem
de tantos casais que, perante as pressões do clima geral de
permissividade e de indiferença ou hostilidade perante a instituição
familiar, lutam por manter a fidelidade ao compromisso matrimonial que
um dia firmaram e assumem a educação dos filhos como uma das primeiras
prioridades na organização da vida familiar.
As outras instituições nunca podem substituir os pais, mas devem
ajudá-los no cumprimento da sua missão educativa.
4. A escola tem um papel relevante no processo de socialização da
pessoa, fornecendo experiências e quadros de referência que prolongam e
completam a educação familiar. É insubstituível o seu papel na
transmissão de conhecimentos e no proporcionar variadas experiências
culturais.
É sabido que a cooperação da família com a escola potencia a
aprendizagem dos alunos e promove um desenvolvimento mais adequado. No
entanto, a escola é subsidiária da família e, no campo da sexualidade,
como noutros, compete à família decidir as orientações educativas
básicas que deseja para os seus filhos, decorrentes dos seus valores,
crenças e quadro cultural.
Do dever de escolher a educação adequada para os seus filhos, decorre,
para a família, o direito de cooperar no planeamento da educação da
sexualidade na escola, contribuir para a definição de objectivos e
selecção de estratégias, acompanhar o processo de tomadas de decisão,
incluindo a selecção e a formação dos professores, e as diversas fases
de execução do projecto e a avaliação dos resultados obtidos.
O facto de a educação da sexualidade constituir uma componente do actual
sistema de ensino básico e secundário, sustentada por legislação
própria, não pode conduzir à subalternização da família, nem impedir o
direito de os pais não aceitarem determinados projectos ou acções por os
considerarem desajustados em relação à perspectiva educativa que desejam
para os filhos. Como noutra ocasião já afirmámos, é tarefa fundamental
do Estado “defender os direitos e deveres educativos dos pais e apoiar
as instituições que os completem na responsabilidade da educação.
Segundo o princípio da subsidiariedade, deve completar a tarefa e missão
educativa dos pais, sem, todavia, contrariar os seus legítimos e
justificados desejos, assim como, criar as estruturas indispensáveis,
escolas ou outras instituições, na medida em que o bem comum o exigir”
(5) .
A educação da sexualidade deve basear-se nas necessidades dos alunos. É
destas que derivam as metas e objectivos, que se referem a um quadro de
valores decorrente da noção de pessoa humana. Falhar na identificação
dessas necessidades e alhear-se do referencial ético compromete
totalmente o programa. É igualmente indispensável entender que os
interesses dos alunos, tanto na infância como na adolescência, embora
constituam base motivacional adequada para aprender, não se assimilam,
inevitavelmente, às suas necessidades profundas.
5. É imprescindível ter em conta que o desenvolvimento da sexualidade
apresenta notáveis diferenças de ritmo, mesmo em indivíduos da mesma
idade ou grupo, e que estas têm de ser respeitadas. Não devem, por isso,
antecipar-se informações, nem incentivar dúvidas ou dificuldades que o
processo desenvolvimental ainda não proporcionou ou não aconselha.
O respeito pelos alunos não permite a utilização de jogos e de outras
estratégias, como o desempenho de papéis, que excitam a imaginação e
exploram sensações de forma manipulatória, ferindo a sensibilidade e a
dignidade dos alunos e não respeitando a sua intimidade e pudor. Tão
pouco se poderão considerar como padrão, comportamentos evidenciados por
minorias, tal como o que respeita às relações sexuais praticadas por
adolescentes.
Se é necessário que as orientações gerais e os programas apresentem um
elenco coerente e bem fundamentado de objectivos e conteúdos, é
indispensável, por outro lado, que os métodos de trabalho e os suportes
pedagógicos se harmonizem com aqueles, de forma a não permitir desvios
entre o ideal a atingir e os resultados alcançados. Se tal harmonia é
quebrada, os resultados serão inevitavelmente negativos e afectarão
globalmente a personalidade dos alunos, comprometendo o seu
desenvolvimento.
Quanto aos docentes, cabe-lhes um papel fundamental. Para além das
competências científicas e pedagógicas, requer-se, como formadores,
maturidade afectiva e humana, e fidelidade aos valores que sustentam os
projectos propostos pela escola. Só assim, poderão merecer a
indispensável confiança por parte das famílias.
Quanto à integração da educação da sexualidade na organização
curricular, qualquer que seja a modalidade escolhida (transdisciplinaridade,
área específica de formação, ou outras), há que garantir a qualidade
formativa dos docentes, a possibilidade de abertura da escola à
colaboração de organizações exteriores, a divulgação antecipada dos
projectos, a clarificação das perspectivas, o direito de opção das
famílias e o respeito pela dignidade com que matéria tão delicada merece
ser tratada.
6. Contribuir para a educação da sexualidade das crianças, dos
adolescentes e dos jovens é uma responsabilidade de todos os cidadãos.
Apelamos à participação de todos, em especial dos cristãos – famílias,
professores e jovens –, a quem dirigimos o repto recentemente lançado
por Bento XVI às famílias cristãs de Roma:
“Continuai, pois, sem vos deixardes desencorajar pelas dificuldades que
encontrais (…) Hoje, um obstáculo particularmente insidioso na obra
educativa é constituído pela presença massiva na nossa sociedade e
cultura, daquele relativismo que, ao não reconhecer nada como
definitivo, tem como última medida apenas o próprio eu com os seus
apetites, e, sob a aparência de liberdade, torna-se para cada um uma
verdadeira prisão. Neste horizonte relativista, não é possível,
portanto, uma verdadeira educação: sem a luz da verdade, mais cedo ou
mais tarde, cada pessoa é condenada a duvidar da bondade da sua própria
vida e das relações que a constituem, da validade do seu empenho em
construir com os outros qualquer coisa em comum” (6).
Lisboa, 23 de Junho de 2005
Notas
(1) Cf., entre outros: Comunicado do Conselho Permanente da CEP sobre o
Projecto de Lei que “reforça as garantias do direito à saúde
reprodutiva” (1999); Nota Pastoral da CEP “Crise de Sociedade, Crise de
Civilização” (2001); Carta Pastoral da CEP “Educação, Direito e dever –
missão nobre ao serviço de todos” (2002); Nota do Conselho Permanente da
CEP “sobre o problema da pedofilia” (2002); Carta Pastoral da CEP “A
Família, esperança da Igreja e do Mundo” (2004).
(2) BENTO XVI - Discurso por ocasião do Congresso Diocesano de Roma
sobre a Família (06 de Junho de 2005).
(3) CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÂO CATÒLICA - Orientações Educativas sobre
o Amor Humano. Linhas gerais para a educação sexual (1983), nº 4, apud
CEP - Carta Pastoral Educação, Direito e dever – missão nobre ao serviço
de todos (2002), nº 11.
(4) CEP - Carta Pastoral A Família, esperança da Igreja e do Mundo
(2004), nº 9.
(5) Cf. II CONCÌLIO ECUMÉNICO do VATICANO - Declaração Gravissimum
Educationis, nº 3, apud CEP - Carta Pastoral Educação, Direito e dever –
missão nobre ao serviço de todos (2002), nº 21.
(6) BENTO XVI - Discurso por ocasião do Congresso Diocesano de Roma
sobre a Família (06 de Junho de 2005).