«O medo do silêncio»
A
medicina encontra-se cada vez mais técnica e diferenciada. Actualmente,
nos congressos médicos (pelo menos os de psiquiatria) fala-se pouco
sobre os doentes. Neste âmbito, a dimensão humana é frequentemente
esquecida ou remetida para um segundo plano. Porém, todos sabemos que a
relação médico-doente é um aspecto importantíssimo na qualidade da
medicina que se pratica.
Com a pressão que se sente diariamente ─ em nome de um aumento de
produtividade ─ para se apresentar “números” de consultas,
internamentos, cirurgias, etc.; o médico tem cada vez menos tempo de
consulta para cada um dos seus doentes. Assim, o tempo de partilha é
reduzido e o doente que, já está só e fragilizado com o seu tormento,
fica ainda mais entregue a si próprio.
Recordo-me de ouvir uma enfermeira, já aposentada, dizer-me,
profundamente comovida: “Trabalhei na cirurgia no tempo da guerra
colonial. E, era um dó ver tanto sofrimento estampado no rosto daqueles
rapazes tão novos! Por vezes, nos casos mais graves, naqueles em que
nada mais havia a fazer, sentia-me completamente impotente e, em
silêncio, agarrava-lhes na mão e chorava baixinho ─ pelo menos não
hão-de morrer sozinhos! ─ pensava, numa revolta contida.”
Uma das primeiras coisas que se aprende em psiquiatria é “escutar o
outro”. Desta forma, contraria-se aquilo que se assimilou nos bancos da
faculdade de medicina; ou seja, a verborreia interrogativa indispensável
para se elaborar uma boa história clínica.
Ás
vezes, – num contexto emocional mais forte – ocorrem silêncios durante
as consultas. A voz fica embargada e o doente dominado pela emoção
emudece. Lembro-me que no início da especialidade esses momentos
causavam-me uma grande ansiedade; sentia (com alguma frustração) que não
estava a ser capaz de ajudar aquela pessoa. Com o tempo, percebi que, os
silêncios são necessários, e até indispensáveis, uma vez que permitem
criar intimidade e cumplicidade com a angústia do doente.
Muitas vezes, foge-se ao silêncio durante a consulta porque surge
inconscientemente o receio de sofrer com o doente. “Vá lá anime-se,
deixe-se disso!”, diz o médico. Ou seja, subsiste um medo que haja
demasiado envolvimento pessoal; o medo do silêncio. Por isso, há que
manter a devida distância e evitar carregar em demasia com o sofrimento
dos outros. Racionaliza-se alguma culpabilidade que por vezes aparece,
com a falta de tempo. É uma atitude defensiva e compreensível.
Existe uma ideia errada que é sempre preciso dizer alguma coisa ou
administrar alguma terapêutica para ajudar alguém que está em
sofrimento. João dos Santos (psiquiatra e pedopsiquiatra) a esse
propósito conta uma história extraordinária. Um dia foi visitar uma mãe
que estava muito deprimida porque tinha perdido um filho. Perante aquela
situação dramática não encontrou palavras de consolo para aquela pobre
mulher. Estava impressionado, já que ele também era pai. Limitou-se a
ouvi-la, ouvi-la, durante muito, muito tempo. Depois, a senhora
finalmente desatou num pranto e aliviada agradeceu-lhe por ele ter
permitido que ela chorasse, por tê-la deixado chorar.
Os
médicos confrontam-se muitas vezes com situações dramáticas e para as
quais a medicina não tem resposta. O mais importante nestes casos é
assumirmos a nossa condição humana e estarmos disponíveis para o doente,
nem que seja para sofrer um pouco com ele, em silêncio….
Pedro Afonso
(Médico Psiquiatra)