Pedro Afonso - 15 Jun 05
 

«O medo do silêncio»

 

A medicina encontra-se cada vez mais técnica e diferenciada. Actualmente, nos congressos médicos (pelo menos os de psiquiatria) fala-se pouco sobre os doentes. Neste âmbito, a dimensão humana é frequentemente esquecida ou remetida para um segundo plano. Porém, todos sabemos que a relação médico-doente é um aspecto importantíssimo na qualidade da medicina que se pratica.

 

Com a pressão que se sente diariamente ─ em nome de um aumento de produtividade ─ para se apresentar “números” de consultas, internamentos, cirurgias, etc.; o médico tem cada vez menos tempo de consulta para cada um dos seus doentes. Assim, o tempo de partilha é reduzido e o doente que, já está só e fragilizado com o seu tormento, fica ainda mais entregue a si próprio.

 

Recordo-me de ouvir uma enfermeira, já aposentada, dizer-me, profundamente comovida: “Trabalhei na cirurgia no tempo da guerra colonial. E, era um dó ver tanto sofrimento estampado no rosto daqueles rapazes tão novos! Por vezes, nos casos mais graves, naqueles em que nada mais havia a fazer, sentia-me completamente impotente e, em silêncio, agarrava-lhes na mão e chorava baixinho ─ pelo menos não hão-de morrer sozinhos! ─ pensava, numa revolta contida.”

 

Uma das primeiras coisas que se aprende em psiquiatria é “escutar o outro”. Desta forma, contraria-se aquilo que se assimilou nos bancos da faculdade de medicina; ou seja, a verborreia interrogativa indispensável para se elaborar uma boa história clínica.

 

Ás vezes, – num contexto emocional mais forte – ocorrem silêncios durante as consultas. A voz fica embargada e o doente dominado pela emoção emudece. Lembro-me que no início da especialidade esses momentos causavam-me uma grande ansiedade; sentia (com alguma frustração) que não estava a ser capaz de ajudar aquela pessoa. Com o tempo, percebi que, os silêncios são necessários, e até indispensáveis, uma vez que permitem criar intimidade e cumplicidade com a angústia do doente.

 

Muitas vezes, foge-se ao silêncio durante a consulta porque surge inconscientemente o receio de sofrer com o doente. “Vá lá anime-se, deixe-se disso!”, diz o médico. Ou seja, subsiste um medo que haja demasiado envolvimento pessoal; o medo do silêncio. Por isso, há que manter a devida distância e evitar carregar em demasia com o sofrimento dos outros. Racionaliza-se alguma culpabilidade que por vezes aparece, com a falta de tempo. É uma atitude defensiva e compreensível.

 

Existe uma ideia errada que é sempre preciso dizer alguma coisa ou administrar alguma terapêutica para ajudar alguém que está em sofrimento. João dos Santos (psiquiatra e pedopsiquiatra) a esse propósito conta uma história extraordinária. Um dia foi visitar uma mãe que estava muito deprimida porque tinha perdido um filho. Perante aquela situação dramática não encontrou palavras de consolo para aquela pobre mulher. Estava impressionado, já que ele também era pai. Limitou-se a ouvi-la, ouvi-la, durante muito, muito tempo. Depois, a senhora finalmente desatou num pranto e aliviada agradeceu-lhe por ele ter permitido que ela chorasse, por tê-la deixado chorar.

 

Os médicos confrontam-se muitas vezes com situações dramáticas e para as quais a medicina não tem resposta. O mais importante nestes casos é assumirmos a nossa condição humana e estarmos disponíveis para o doente, nem que seja para sofrer um pouco com ele, em silêncio….

 

 

 Pedro Afonso

(Médico Psiquiatra)

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