OPINIÃO João Maria
MendesA sub-cultura pop identitária (do rap aos murais e aos grafitti)
e a postura de "rebelde com causa" desta geração perdida é um dos
fenómenos culturais mais expressivos no Portugal contemporâneo
Os acontecimentos do 10 de Junho na praia de
Carcavelos não deveriam surpreender ninguém. Eles apenas exprimem a
dimensão de um fenómeno que tem vindo a sair do seu casulo ao longo dos
últimos anos: a existência de uma "geração perdida" de jovens africanos
- imigrantes de segunda geração, que têm entre 12 e 20 anos e não têm
raizes em África nem futuro aceitável em Portugal - que se revê
irresistivelmente na delinquência de gang. Mas o facto deste "assalto à
praia" ter sido feito por 500 ou mais protagonistas, mostra algo mais
que um gang em acção: mostra organização e o progresso de uma cultura
agressiva.
A sub-cultura pop identitária (do rap aos murais e aos grafitti) e a
postura de "rebelde com causa" desta geração perdida é um dos fenómenos
culturais mais expressivos no Portugal contemporâneo, e funciona como
terra de abrigo e ideologia de apoio a comportamentos desviantes
generalizados.
Há uma cegueira deliberada, de esquerda, de centro-esquerda e de
direita, face a este fenómeno. A esquerda e o centro-esquerda
ignorá-lo-ão para além do imaginável, porque uma militância anti-racista
preconceituosa deforma a sua leitura do real, levando-os a "nunca
dramatizar", "nunca empolar" sintomas mais e mais preocupantes. À
direita não há (ainda?) liderança xenófoba e racista assumida, porque a
direita institucional esteve longamente no governo e, ali, tem tido mais
com se que preocupar: xenofobia e racismo são, sobretudo, armas
populistas de contra-poder. Todos fazem, assim, a política da avestruz.
Os media, sobretudo as televisões, agravam esta cegueira política: o
"assalto à praia", numa Carcavelos apinhada de milhares de banhistas
desde as primeiras horas da manhã, começou às 14 horas mas só há imagens
televisivas captadas na praia às 18 ou 19. Mesmo em dia de muito
trânsito na marginal, Carcavelos fica a 15 minutos dos estúdios da SIC e
a 45 dos estúdios da RTP e da TVI. Às 18 horas já nada se passava no
areal: os assaltantes, à mistura com banhistas, apinhavam-se desde o
meio da tarde nas estações ferroviárias, vigiados por homens da PSP -
coisa de que também não há imagens. Entretanto tinha havido violência
generalizada e êxodo maciço da praia, confrontos com a polícia, corte da
marginal, detenções, feridos. E também houve problemas nas ruas e
comércio próximos da estação de Carcavelos.
A TVI mostrou, às 19 horas, fotografias dos "arrastões" de Carcavelos -
aparentemente feitas por um fotógrafo da Lusa - sem identificar a sua
origem. E depois mostrou também imagens de arquivo de um "arrastão" de
"miúdos da rua" numa praia brasileira...
A par da reportagem inexistente, onde estava a dúzia e meia de
comentadores que interpreta instantaneamente toda a espécie de
acontecimentos em todas as televisões nacionais? Em Guimarães, a receber
as comendas do Estado? A banhos, incontactável, no fim-de-semana
prolongado?
No torpor da sua incapacidade, a cobertura televisiva do "assalto à
praia" exprime a pesada vontade de não ver nem interpretar um fenómeno
que tem vindo a ganhar importância em praias da Linha de Cascais - as de
acesso mais fácil e mais próximas de estações ferroviárias, a começar
pelo Tamariz - como nos comboios da Linha de Sintra, mas que transcende
a dimensão local.
Os assaltantes vêm sobretudo da Amadora, Chelas e de outros "ghettos
negros" da Grande Lisboa cuja marginalização se tem vindo a acentuar.
Toda a gente os vê chegar de comboio, vindos do Cais do Sodré e de Algés.
Até agora quase não se lhes têm juntado jovens de bairros problemáticos
do concelho de Cascais (Fim do Mundo, Marianas e zonas de realojamento),
mas é apenas uma questão de tempo até que tal aconteça.
Todos sabemos - ou podemos saber - que o crescendo de marginalização de
jovens africanos é uma das fracturas sociais que a desintegração e a
"falta de futuro" agravam de forma sistemática e cada vez mais veloz. O
problema pede políticas que não se satisfaçam com resultados
liliputianos, obtidos em "experiências-piloto".
O que as televisões fizeram, em Carcavelos, foi pior que a política da
avestruz: noticiaram, sim, mas o mínimo possível, com base em
depoimentos avulsos de comerciantes da praia e em relatos policiais. O
comentário ficou por conta da rua e da esquadra de polícia. Foi um
contributo exemplar para que se continue a ignorar o que leva mais de
500 "favelados" negros a devastar, durante horas, uma praia suburbana,
no Portugal de 2005. E no entanto este acontecimento é a ponta de um
icebergue que constitui um grande tema para análise e reflexão. É
preciso "tematizar" a realidade em que vivemos, para a entendermos
melhor. O que leva os media a não o fazer? Professor universitário