Público - 12 Jun 05
 
Carcavelos: não ver, não saber
OPINIÃO João Maria Mendes

A sub-cultura pop identitária (do rap aos murais e aos grafitti) e a postura de "rebelde com causa" desta geração perdida é um dos fenómenos culturais mais expressivos no Portugal contemporâneo

Os acontecimentos do 10 de Junho na praia de Carcavelos não deveriam surpreender ninguém. Eles apenas exprimem a dimensão de um fenómeno que tem vindo a sair do seu casulo ao longo dos últimos anos: a existência de uma "geração perdida" de jovens africanos - imigrantes de segunda geração, que têm entre 12 e 20 anos e não têm raizes em África nem futuro aceitável em Portugal - que se revê irresistivelmente na delinquência de gang. Mas o facto deste "assalto à praia" ter sido feito por 500 ou mais protagonistas, mostra algo mais que um gang em acção: mostra organização e o progresso de uma cultura agressiva.
A sub-cultura pop identitária (do rap aos murais e aos grafitti) e a postura de "rebelde com causa" desta geração perdida é um dos fenómenos culturais mais expressivos no Portugal contemporâneo, e funciona como terra de abrigo e ideologia de apoio a comportamentos desviantes generalizados.
Há uma cegueira deliberada, de esquerda, de centro-esquerda e de direita, face a este fenómeno. A esquerda e o centro-esquerda ignorá-lo-ão para além do imaginável, porque uma militância anti-racista preconceituosa deforma a sua leitura do real, levando-os a "nunca dramatizar", "nunca empolar" sintomas mais e mais preocupantes. À direita não há (ainda?) liderança xenófoba e racista assumida, porque a direita institucional esteve longamente no governo e, ali, tem tido mais com se que preocupar: xenofobia e racismo são, sobretudo, armas populistas de contra-poder. Todos fazem, assim, a política da avestruz.
Os media, sobretudo as televisões, agravam esta cegueira política: o "assalto à praia", numa Carcavelos apinhada de milhares de banhistas desde as primeiras horas da manhã, começou às 14 horas mas só há imagens televisivas captadas na praia às 18 ou 19. Mesmo em dia de muito trânsito na marginal, Carcavelos fica a 15 minutos dos estúdios da SIC e a 45 dos estúdios da RTP e da TVI. Às 18 horas já nada se passava no areal: os assaltantes, à mistura com banhistas, apinhavam-se desde o meio da tarde nas estações ferroviárias, vigiados por homens da PSP - coisa de que também não há imagens. Entretanto tinha havido violência generalizada e êxodo maciço da praia, confrontos com a polícia, corte da marginal, detenções, feridos. E também houve problemas nas ruas e comércio próximos da estação de Carcavelos.
A TVI mostrou, às 19 horas, fotografias dos "arrastões" de Carcavelos - aparentemente feitas por um fotógrafo da Lusa - sem identificar a sua origem. E depois mostrou também imagens de arquivo de um "arrastão" de "miúdos da rua" numa praia brasileira...
A par da reportagem inexistente, onde estava a dúzia e meia de comentadores que interpreta instantaneamente toda a espécie de acontecimentos em todas as televisões nacionais? Em Guimarães, a receber as comendas do Estado? A banhos, incontactável, no fim-de-semana prolongado?
No torpor da sua incapacidade, a cobertura televisiva do "assalto à praia" exprime a pesada vontade de não ver nem interpretar um fenómeno que tem vindo a ganhar importância em praias da Linha de Cascais - as de acesso mais fácil e mais próximas de estações ferroviárias, a começar pelo Tamariz - como nos comboios da Linha de Sintra, mas que transcende a dimensão local.
Os assaltantes vêm sobretudo da Amadora, Chelas e de outros "ghettos negros" da Grande Lisboa cuja marginalização se tem vindo a acentuar. Toda a gente os vê chegar de comboio, vindos do Cais do Sodré e de Algés. Até agora quase não se lhes têm juntado jovens de bairros problemáticos do concelho de Cascais (Fim do Mundo, Marianas e zonas de realojamento), mas é apenas uma questão de tempo até que tal aconteça.
Todos sabemos - ou podemos saber - que o crescendo de marginalização de jovens africanos é uma das fracturas sociais que a desintegração e a "falta de futuro" agravam de forma sistemática e cada vez mais veloz. O problema pede políticas que não se satisfaçam com resultados liliputianos, obtidos em "experiências-piloto".
O que as televisões fizeram, em Carcavelos, foi pior que a política da avestruz: noticiaram, sim, mas o mínimo possível, com base em depoimentos avulsos de comerciantes da praia e em relatos policiais. O comentário ficou por conta da rua e da esquadra de polícia. Foi um contributo exemplar para que se continue a ignorar o que leva mais de 500 "favelados" negros a devastar, durante horas, uma praia suburbana, no Portugal de 2005. E no entanto este acontecimento é a ponta de um icebergue que constitui um grande tema para análise e reflexão. É preciso "tematizar" a realidade em que vivemos, para a entendermos melhor. O que leva os media a não o fazer? Professor universitário

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