Diário de
Notícias
- 06 Jun 05
Edmundo Martinho presidente do instituto da segurança social
"Alguma coisa falha nos casos de maus
tratos"
Para o novo presidente do Instituto da
Segurança Social, os técnicos devem ser mais responsabilizados. Mas antes o
Estado tem que lhes dar condições de trabalho
sofia jesus
DN-Pedro Saraiva
confiança. Edmundo Martinho defende
o modelo das comissões, que diz funcionar bem em muitas zonas
As mortes de Vanessa, Joana ou Catarina dizem respeito a crianças
sinalizadas pelos serviços. O Estado está a falhar na protecção dos menores?
Alguma coisa falhou. Para ter acontecido o que aconteceu, alguma coisa
falhou. Não me parece é que devamos seguir a solução mais fácil, que é
encontrar rapidamente um alvo para os falhanços colectivos que vamos tendo.
Devemos antes perceber por que falhou e onde podemos corrigir. O modelo das
comissões de protecção é um modelo que faz todo o sentido aprofundar,
reforçar. Não há nenhum serviço, por mais bem organizado que seja, capaz de
prevenir de forma integral todos os acontecimentos. O único modo de prevenir
situações deste tipo é envolver toda a comunidade.
Há desarticulação entre as entidades?
Não acho que esse seja o problema principal. Em Portugal, continuamos a
sofrer do paroquialismo, e o modelo das comissões procura afrontar estas
práticas, colocando num espaço de trabalho comum entidades distintas,
reunidas com o mesmo objectivo, que é a protecção das crianças. E isto
funciona bem em muitas partes do País.
Estes casos são uma excepção?
Não tenho a menor dúvida de que são. Antes de haver comissões, se
acontecesse um caso destes, a quem é que se atribuiriam as
responsabilidades? Aos pais. Mas com isto não estou a diminuir a importância
do papel das comissões nem da eventual responsabilidade que possam ter,
pois, se defendo um aprofundar do modelo, isso também significa um aumento
da responsabilidade. Mas só podemos responsabilizá-las se dispuserem das
condições adequadas para poderem trabalhar.
Mas responsabilizá-las de que forma?
É o principio básico da autonomia. As comissões são autónomas, só têm que
responder perante o Ministério Público. Mas têm que saber exercer essa
autonomia assumindo os actos que praticam, justificando-os.
Responsabilização não é culpabilização, porque é sempre mais fácil culpar
alguém, de preferência com um rosto abstracto, como "o sistema". E isso é
que não pode ser. É preciso pensar quem praticou o acto e porque é que teve
condições para o praticar. E é aqui que pode entrar o papel dos serviços
públicos, que é dizer assim em determinado momento não deram a atenção que
deveriam ter dado, não estavam despertos para certo tipo de sinais que
estavam presentes, e isto deve ser merecedor de reflexão...
E os técnicos não deveriam ser responsabilizados pelo Estado?
Se de facto foi isso que aconteceu, deviam. Mas pelo que sabemos, por
exemplo, no caso da Vanessa, a Segurança Social (SS) nunca teve um contacto
com a criança, do ponto de vista de situação de risco, porque ela estava em
casa da madrinha. A avó era beneficiária do Rendimento Social de Inserção (IRS),
mas a criança não fazia parte do agregado. Só no fim de 2004 isso mudou...
Mas isso não terá sido tido em conta no processo de regulação paternal?
Sobre isso não posso falar, porque não conheço a matéria. Está a correr um
processo de averiguação interna ao IRS para perceber o grau de
responsabilidade de quem produziu os relatórios, mas não sei o que diziam ou
que a avaliação dirá, nem o que levou o juiz a decidir daquela forma, porque
temos que partir do princípio de que ele decidiu com base em dados de que
dispunha e que alguém disponibilizou. Há muita coisa para melhorar, não só
na capacidade de detecção, como no acompanhamento das situações, mas não
evitaremos nunca a existência de casos deste tipo.
Os técnicos de acção social têm a seu cargo muitas famílias. Estão
garantidas as condições para acompanhá-las?
Não, não estão. Daí as medidas anunciadas pelo Governo...
Mas isso foi só para as comissões. E no resto dos serviços, isso não se
sente?
Sente-se. Vivemos numa contradição terrível. Pretende-se, e bem, que a SS e
as entidades respondam às situações de vulnerabilidade social. E isto não se
faz por carta, é com presença próxima das pessoas com as famílias. Mas
também se diz para despedir gente da Administração Pública? Ou a comunidade
entende que há espaço para a intervenção, que se faz de proximidade e
precisa de recursos, ou não temos condições para exigir qualidade no
trabalho.
Porquê só agora esse reforço das comissões? Houve falta de vontade
política?
Só pode ter havido uma de duas coisas ou falta de vontade política ou
desatenção e negligência. Quero pensar que foi falta de vontade política,
porque não chega fazer discursos sobre a protecção das crianças e depois
diabolizar as comissões, sem lhes dar condições para trabalhar.
A contratação dos tais 120 técnicos servirá para resolver o problema?
É um passo fundamental, sem este nada feito. São problemas que exigem
disponibilidade para estar junto das famílias, porque a maioria das decisões
são de apoio em meio natural de vida. E isto não é compatível com o cenário
de um técnico que, por muito boa vontade que tenha, e tem, vai a correr para
a reunião da comissão de manhã, mas à tarde corre para outro serviço... Há
uma bola de neve de tarefas para estes técnicos que tem que ser travada.
E a Comissão Nacional, também será reforçada? Há quem diga que as
comissões locais estão abandonadas por ela.
Os últimos relatórios das comissões, de 2003, são muito explícitos quanto a
isso, no sentido de dizer que se sentem desapoiadas. A Comissão Nacional (CNPCJR)
tem que ter um papel de proximidade às comissões, ser um recurso sempre
disponível. Para isso, precisa de apoio técnico. E pode questionar-se se a
CN deve ter um corpo técnico próprio, ou se deve socorrer-se da capacidade
técnica de instituições que já existem, como o Instituto da Segurança Social
(ISS). Penso que a CN ganharia se quem lá estivesse o fizesse a tempo
inteiro, mas se suportasse numa estrutura que tem já a capacidade de se
propagar no terreno, como o ISS.
"Antes
pagar à família que à instituição"
Há planos para alterar os modelos de institucionalização de crianças?
Primeiro é preciso alterar o modelo do nosso relacionamento com a resposta
institucional. A colocação institucional deve ser a última resposta, não a
primeira. Depois é preciso assegurar que só está nas instituições quem lá
deve estar. Por isso o programa do Governo visa desinstitucionalizar 25% das
crianças que estão nos lares. Há estudos que indicam que 25 a 30% das
crianças estão nos lares por razões que poderiam ser preenchidas fora deles,
seja porque as famílias não têm dinheiro ou porque pensavam que era a melhor
solução educativa para o seu filho... Razões que nada têm a ver com
situações de risco para a criança. Depois há que progressivamente alterar o
modelo de institucionalização, dando outra atenção à adopção, ao acolhimento
familiar e às soluções que visem a autonomia dos jovens, fora do lar.
Como se vão retirar 25% das crianças?
Não sei como o Governo o fará, mas penso que devemos perceber, criança a
criança - e esse trabalho já foi feito -, com os técnicos e famílias, quais
as que estão sinalizadas como potencialmente capazes de regressar a casa,
com apoio numa dupla via apoio à criança e à família, não só a nível
afectivo mas material. E é preferível dar o dinheiro à família do que à
instituição.
E os lares com cem crianças?
As estruturas massificadas não são boas conselheiras, mas o mais importante
é assegurar que as condições de acolhimento são de respeito integral pelos
direitos dessas crianças. Todos concordamos que os lares deviam ser menores,
porque a dimensão é um factor de risco - quanto maior a dimensão, mais
difícil é o acompanhamento -, mas coloco a tónica na qualidade do
acolhimento e não na sua dimensão.
Um reforço da fiscalização?
Não tanto da fiscalização, mas do acompanhamento dessas instituições,
ajudando-as, até na formação. Temos melhores condições de intervir mais
rapidamente na qualidade. E a solução é prevenir as entradas. É mais fácil
evitar as entradas do que promover as saídas.
Então porque é que isso não é feito?
Não sei. Fizemos um estudo a todo o universo e percebeu-se que havia
crianças que estavam nos lares, sem necessidade disso. E saíram
recomendações, que não foram levadas à prática e que espero que agora sejam.
As convicções no plano social só o são se se transformarem em prática, senão
são intenções. E nos últimos tempos o investimento nas áreas sociais desceu
brutalmente. A nível financeiro e político. O exemplo mais gritante é o do
Rendimento Social de Inserção.
Em 2000, as auditorias da Inspecção- -Geral da SS a 257 lares revelaram a
existência de maus tratos em 17 deles. Que medidas foram tomadas para
reforçar a fiscalização das instituições?
O esforço fiscalizador tem que continuar. Quanto às instituições com quem a
SS se relaciona, temos que adoptar uma atitude muito rigorosa de
fiscalização, para detectar situações de incumprimento. Mas também uma
atitude de proximidade no acompanhamento, numa dimensão preventiva, para
ajudar a que não haja coisas mal feitas. As instituições têm que sentir que
têm na SS um parceiro e não um fiscal.
Quanto à Casa do Gaiato, como está o trabalho da comissão criada?
Essa comissão está a trabalhar e com resultados muito positivos, porque é um
exemplo típico do modo como podemos sempre melhorar as condições em que as
crianças estão acolhidas.
Que apoio será dado às creches?
As creches são uma das prioridades do Governo que, até ao final da
legislatura, quer que o País tenha capacidade para receber um terço das
nossas crianças até aos três anos. E é nesse sentido que se está a
trabalhar, preparando instrumentos que permitam o desenvolvimento de
respostas de creches, seja de iniciativas sociais seja da iniciativa privada
ou lucrativa. O preço das creches e o meio como a SS apoia estas, têm que
ser postos em cima da mesa, de modo a percebermos de que forma podemos
incentivar o aparecimento destas respostas.
Apoiar a
dependência e não a velhice
No apoio aos idosos, há quem diga que o Estado está cada vez mais a delegar
certas tarefas nas misericórdias, que se queixam das listas de espera...
A vocação da SS não é gerir equipamentos, como lares, mas apoiar as
instituições. E há uma relação privilegiada com as IPSS e as misericórdias, que
deve manter-se. O que pode mudar é a forma como a relação se processa, não a
natureza do serviço prestado, que é de qualidade. Mas que a SS não tem que se
responsabilizar por opções de vida que os cidadãos tomem, sem que disso
precisem. Há pessoas que vão para os lares porque não gostam de viver sós, mas é
preciso saber se deve ser a SS a assegurar o pagamento dessas decisões, quando
as pessoas estão na plena posse das suas capacidades. A SS tem que ser capaz de
apoiar a dependência, não a velhice - nos lares, não nas pensões, claro. Nos
cuidados continuados, onde isso está a ser feito, o objectivo não é o lar, mas o
regresso a casa. A ajuda pode passar por pequenas obras nas casas e apoio no
domicílio. Isto custa-nos muito menos do que ter uma pessoa num lar e para ela é
muito melhor.
Um estudo do ISS de Janeiro coloca um quarto dos concelhos em risco de morte
social. O que será feito?
O estudo é um suporte muito importante do projecto da Rede Social, que é a
junção de todas as entidades da área social, numa zona.
Mas o anterior Governo estabelecera uma lista de concelhos prioritários...
Isso ainda estamos a avaliar. Mas há zonas prioritárias do País onde é preciso
investir e as suas candidaturas devem ser privilegiadas.
Segurança Social deve contratar mais os
privados
Defende um acompanhamento contínuo por parte da Segurança Social (SS). Há
meios para isso?
Provavelmente a SS terá que encontrar um recentramento da sua posição. A SS tem
que se preocupar com a regulação, mas não tem que ser a disponibilizadora das
próprias soluções. Penso que é possível, com benefício, que a SS caminhe para o
estabelecimento de contratos com entidades idóneas capazes de assegurar alguns
desses serviços. Ou seja repensar o modelo, sem esquecer que a responsabilidade
da SS pública tem que ser um primado absoluto. Não é uma desresponsabilização,
mas um assumir que temos recursos humanos limitados e que a solução pode ser a
sua gestão diferenciada.
Que entidades poderão fazê-lo?
Cooperativas ou empresas de técnicos, associações de envolvimento local... Não
trabalharíamos só com IPSS e misericórdias, que fazem um trabalho excepcional,
mas preveríamos outras hipóteses. Isso está a ser testado no acompanhamento de
famílias do Rendimento Social de Inserção, nalguns pontos do País. Mais do que
protocolos, sou defensor de contratos. E isto pode ser estendido a todas as
áreas em que o trabalho principal seja de acompanhamento das pessoas.
Isto não trará despesa acrescida?
Não. A nível financeiro, terá efeito neutro, mas a vantagem será a SS
concentrar-se no garante de direitos sociais, permitindo um grau de
especialização que dificilmente consegue por si só assegurar.
Isso não é uma forma de o Estado se demitir das responsabilidades?
Não, pelo contrário. O Estado assume aqui o papel central de garante da
qualidade dos serviços que presta. Não quer dizer que não assegure essa
qualidade, prestando-os ele próprio. Isto vem permitir é flexibilidade. A SS já
contrata com instituições respostas sociais os lares e creches em Portugal não
são da SS, e não é por isso que se diz que é menos responsável por eles. Isto é
uma reflexão, não há orientação política nesse sentido. Mas se as ideias tiverem
acolhimento junto do Governo, penso que é um caminho que pode ser seguido.
Que efeito terão no ISS os cortes orçamentais anunciados pelo Governo ?
Poderá ter que haver exercício disciplinador na reorganização dos recursos, mas
não haverá cortes que afectem a nossa missão central.
O que é necessário mudar no ISS?
Este instituto tem quatro anos e sou o quinto presidente. Não quero perpetuar-me
no lugar, mas a estabilidade orgânica é fundamental. Depois é preciso
remobilizar as pessoas, o que tem a ver com a definição clara de prioridades.
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