Público - 30 Jun 04
Ai, Portugal...
Por JOAQUIM FIDALGO
J., chamemos-lhe assim por comodidade, tem um bom emprego e um bom
ordenado. Trabalha há muitos anos, sempre por conta de outrem. Fez
um curso superior, lá foi subindo degrau a degrau, e hoje pode
dizer-se que não ganha mal: cerca de 3000 euros brutos por mês, o
que dá, líquidos, uns 2000 euros, ou seja, 400 contos. Não é fora de
série para um quadro superior com tantos anos de carreira, mas
enfim...
Há dias, J. recebeu o seu recibo de ordenado. Lá estava, como de
costume: ao lado esquerdo, os tais 3000 e picos de vencimento; ao
lado direito, logo ali à cabeça, o IRS retido, 710 euros. E depois
mais isto e mais aquilo, contas redondas traz para casa 2000 euros.
Os tais 400 contos. Podiam ser 600, mas J. paga pontualmente os seus
impostos... Nem se diga que é por ser cidadão exemplar: ele paga os
impostos até porque não pode deixar de os pagar! E lá vão assim para
os cofres do Estado, certinhos, todos os meses, só de IRS os tais
710 euros, cerca de 140 contos. Todos os meses. Só de IRS. É assim a
vida, ele até não ganha mal, nem se queixa, vendo o que vai por aí.
Pouco depois, o recibo ainda fresquinho no bolso, J. compra o
jornal. E lê: "Profissões liberais pagam apenas 6% de todo o IRS".
Curioso, continua a ler: "Os trabalhadores independentes - nos quais
se incluem médicos, advogados e arquitectos, entre outros - pagaram
de IRS uma média de 656 euros, em 2003". Como?... Só isso?... E J.
põe-se a fazer contas de cabeça: quer dizer que, em 2003, os
trabalhadores independentes (nos quais se incluem, por larga fatia,
os profissionais liberais) pagaram de IRS, num ano inteiro, menos do
que ele, J., paga num só mês?... Parece que sim. Claro que as
estatísticas têm destas coisas: há muito independente que pagou
bastante mais do que aquilo mas, em contrapartida, muitos outros nem
sequer aquilo pagaram. J., sim, pagou certinho todos os meses. E,
como ele, os milhares e milhares de trabalhadores por conta de
outrem, aqueles que não podem fugir aos impostos. Aqueles que, lá
dizia o jornal, são responsáveis por cerca de 70 por cento de toda a
colecta de IRS. Os assalariados que paguem a crise, que os
independentes e liberais continuam em razoável escala, pelas mais
diversas portas e janelas, a fugir às suas obrigações fiscais. Há
tanta maneira de fugir, tanta "despesa" dedutível, tanto
"investimento" amortizável, e lá se chega ao fim do ano quase sem
matéria colectável, coitadinhos de tantos dos nossos profissionais
liberais, é vê-los por aí rotos e esfarrapados, nos seus carrinhos
económicos e apartamentos de subúrbio...
J. volta a olhar o recibo, os 3000 euros brutos, os 710 euros de IRS
cobrados à cabeça, os 2000 líquidos com que fica, e sortudo que ele
é, até nem ganha mal, de que se queixa?... Não, não se queixa. Só
que, ao ler estas notícias, sente difusamente que andam a fazer dele
parvo.
Mas que rica altura para pensar nestas coisas, tem lá algum
jeito?!... Vamos mas é a guardar o recibo e a abalar depressa para
casa, que não tarda está a começar o jogo. Força, Portugal!
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