Público - 21 Jun 04
A Sousa Franco, cristão e cidadão
Por MÁRIO PINTO
Compreende-se muito bem que a humanidade tenha demorado muito tempo
até chegar à democracia, porque, de entre todas as formas políticas,
é a mais distante da natureza primária dos instintos, da força
bruta, do egoísmo. Esta reflexão aprende-se com Bergson, em "Les
deux sources de la morale et de la religion". Foi precisa uma penosa
e lenta evolução, no sentido de uma libertação pessoal nas duas
esferas, eco-biológica e ético-espiritual, para que em consequência
nos pudéssemos libertar nas relações sociais.
Esta libertação social começou politicamente com a democracia, mas
já estava antes anunciada na família e foi depois experimentada
pelos ideais cristãos em pessoas e pequenas comunidades fraternas. A
democracia consiste na atribuição à pessoa humana de direitos
fundamentais invioláveis. Estes direitos, para serem inviolados,
exigem de todos a fidelidade no cumprimento de deveres. Assim, o
"homo democraticus" é aquele que, solidariamente, goza os seus
direitos fundamentais invioláveis e cumpre fielmente os seus deveres
fundamentais. Inseparavelmente, como duas faces de uma mesma moeda.
Sem deveres, não há direitos. Convém que a reivindicação dos
direitos tenha presente que a única forma de dar efectiva
consistência prática aos direitos é cumprir os deveres. Num certo
sentido, o lado dos direitos é o lado passivo do gozo; e é o lado
dos deveres que é activo, contributivo. E não esquecer que o homem
cresce pelo que dá, mais do que pelo que recebe. E se merece o que
recebe, é para crescer, e quando cresce torna-se devedor. Em
democracia, o cidadão é um ser bifronte, simultaneamente legislador
e súbdito, para usarmos a imagem de Kant; e o povo é,
simultaneamente, soberano e sociedade civil.
É neste eixo de direitos e deveres que se conciliam a liberdade e a
igualdade, essas duas irmãs gémeas que tantas históricas desavenças
têm tido. Conciliação que não é estável sem a terceira irmã, a
fraternidade, tão republicanizada na Revolução Francesa e tão
menorizada no discurso politicamente correcto destes nossos tempos
pós-modernos, que lhe faz uma desgraduação no conceito substitutivo
de solidariedade. Contudo, a solidariedade pode ser uma simples
racionalização calculista do egoísmo. Só a fraternidade supera a
dialéctica egoísmo/altruísmo por um novo interesse pessoal e
comunitário, o interesse do coração, sem contradição entre o
interesse da razão e o da vontade. Assim se compreende melhor que,
voltando a Bergson, a democracia é de essência evangélica e o seu
motor é o amor. Pois que, no limite, só o amor pode libertar
inteira, definitiva e perfeitamente: "ama e faz o que quiseres".
Sobretudo nos turbulentos mas exaltantes anos 60, esteve muito na
ordem do dia do pensamento de intelectuais e estudantes a construção
de uma sociedade socialista final, de uma utopia de sociedade sem
Estado, isto é, sem coacção, onde reinariam a liberdade, a
igualdade, a não violência e a abundância. Isto era defendido em
termos revolucionários pelas correntes marxistas-leninistas, que
recusavam militantemente a existência de Deus-Amor e acreditavam num
homem perfeito a partir da evolução das condições materiais da
existência humana. A experiência histórica desmentiu essa tentativa
nos países do socialismo real; resta por comprovar historicamente a
utopia do ideal cristão. É bom para todos, crentes e não crentes,
que esta utopia esteja ainda de pé. E daí que seja muito de admirar
que os ex-utopistas materialistas derrotados tanto se esforcem por
combater a cidadania civil desta outra utopia espiritualista.
2.António Luciano de Sousa Franco, de quem penso que conheci bem o
pensamento e as convicções humanistas e espiritualistas, foi, sem
dúvida, entre nós, um testemunho integral e integrante desta utopia;
pela fé cristã, pelo saber científico, pela cultura, pelo civismo e
pelo empenhamento nos caminhos árduos da política, que nem sempre se
oferecem fáceis e inequívocos à luz da doutrina social da Igreja. A
Igreja portuguesa perdeu um dos seus mais ilustres filhos leigos. E
a nação portuguesa perdeu um dos seus mais preciosos cidadãos. Não
me lembro de que alguma vez ele tenha hesitado em afirmar na vida
pública as grandes causas e convicções da sua fé cristã. Não me
lembro de que alguma vez isso tenha prejudicado a sua credibilidade
política ou desviado a sua acção pública. Atrevo-me a dizer que foi
um belo exemplo para todos nós, num tempo em que o testemunho é cada
vez mais importante e deve ser exaltado.
3.Uma das grandes causas que Sousa Franco sempre defendeu
intrepidamente, sem tibiezas nem meias palavras, foi a da liberdade
de educação, e consequentemente a da liberdade de escolha da escola
privada com a garantia do financiamento pelo Estado em igualdade com
aqueles que preferem a escola estatal. Por isso, as considerações
que se seguem são também uma homenagem.
No PÚBLICO de 8 de Maio, o padre Burguete, que há décadas se ocupa
das questões do ensino e foi por longo tempo presidente da AEEP,
Associação das Escolas de Ensino Privado (que representa meio milhar
de escolas privadas), deu uma entrevista e dela destaco duas
declarações. Primeira: "em trinta anos, nada mudou". Digo eu: de
decisivo no panorama português acerca da marginalização da liberdade
de educação, continuando o Estado do pós-25-de-Abril, como antes
durante o Estado Novo, a manter o monopólio educativo e o desígnio
de Estado-educador. Segunda: "se fosse ministro da Educação,
demitia-me, por não conseguir trabalhar". Digo eu: quem manda no
Ministério da Educação são os "lobbies" da educação, tecnocratas da
administração, sindicatos, universidades públicas e escolas
superiores de educação. A ideia de que o Ministério da Educação é
ingovernável tem décadas e tem vigorado em governos de várias cores
políticas.
Não resta muita esperança de que as actuais duas equipas
ministeriais da Educação cumpram a promessa eleitoral de promover a
liberdade de educação e de escolha da escola. No caso das escolas
com contrato de associação, vai-se repor o radicalismo da
interpretação gonçalvista da supletividade da escola privada por
territórios educativos. No caso de novas universidades públicas e
cursos de medicina, é inequívoco: o Estado quer manter e alargar o
seu monopólio e bloqueia os privados, mesmo com "numerus clausus".
Entretanto, o ministro David Justino declarou no PÚBLICO de dez do
passado mês: "neste momento, não falta dinheiro à educação". Apetece
perguntar: a qual educação? "Tudo como dantes...".Professor da
Universidade Católica
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