Diário de Notícias - 2 Jun 03

Autoridade abalada
João César das Neves

Tivemos em sobressalto, com pessoas famosas suspeitas, acusadas, presas ou fugidas. Diz-se que a democracia está em crise, as instituições podres e o País doente. Mas o alarme nasce de uma confusão de autoridades, exagerada pela neurótica tendência nacional para o dramatismo.

Não se pode negar que existe um forte abalo da autoridade. Da verdadeira autoridade. É que hoje, no tempo da imagem e da ilusão, o prestígio social reside, não tanto na política desacreditada ou na economia suspeita, mas na sedução e no espectáculo. Com o domínio da televisão, as referências populares deixaram de ser os líderes ou os militares. São os cómicos. O povo tem fé nos milagres, não dos santos, mas dos apresentadores de concursos e autarcas populistas. Assim, prender figuras mediáticas é tão traumático como foi a queda da nobreza medieval. Pode ser insólito e ridículo, mas é também devastador. Essa perturbação vem ampliada pelo inédito de ver poderosos na prisão. Mas tal só surpreende quem os considerar acima do crime. Ora a presunção é precisamente a inversa. Sabemos, com Lord Acton desde 1887, que na sociedade moderna «o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente». Anormal é serem tão poucos os presos célebres.

Há, no entanto, uma grave crise na alma nacional: está em cheque o jet set referência moral básica de uma sociedade frívola. Mas isto não se deve confundir com uma falha na democracia. Pelo contrário, a queda da autoridade comediante e demagógica até pode servir para afirmar a autoridade formal.

Isto sucede: até ao momento, apesar de tudo, as instituições têm funcionado bem. Exceptuando a imprensa, com a habitual histeria e imaturidade, os intervenientes cumprem as suas funções de forma digna e competente. A justiça tem sido rigorosa, como antes, e eficiente, como nunca; os órgãos de soberania mostram distanciamento e seriedade; os partidos, mesmo afectados, estão à altura das responsabilidades. Tudo manifesta uma solidez institucional inesperada e preciosa, no meio da queda dos ídolos.

Mesmo deputados na cadeia ou ministros no tribunal não são ruptura do sistema. Uma democracia está em crise, não quando tem problemas, mas quando não consegue lidar com os problemas que tem. Todas as sociedades, por melhores que sejam, sofrem acidentes e crimes. As boas resolvem-nos; as más escondem-nos ou deixam-se vencer por eles. Portugal está a revelar-se agora uma boa democracia.

Mas estes momentos, mesmo só emotivos, são sempre um teste importante. Que ainda está longe de concluído. É possível que todo o aparato acabe por não dar em nada, sem culpados castigados. Ou, pelo contrário, que a ânsia de condenações se estenda a inocentes ou mine a solidez político-institucional. Estes são os perigos que todos devem procurar evitar. Se o conseguirem, a nossa democracia ultrapassa um obstáculo importante e revela um nível precioso de maturidade. Esta tem de ser a prioridade suprema de toda a classe dirigente.

Não se deve subestimar a delicadeza e o perigo da situação. No tempo fútil do entretenimento, os choques emocionais têm efeitos bem reais. Por isso, a prisão dos patriarcas burlescos conta como se fosse um abalo fundo. Se a autoridade institucional suprir o que perdeu a autoridade sedutora, isso reforça, ao contrário do que se diz, a dignidade e o respeito da democracia portuguesa.

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