Portugal é um país onde há a arreigada convicção de
que a liberdade é não cumprir as regras
Ouve-se falar muito pouco de Estado de Direito em
Portugal. Infelizmente, isso não se deve à aplicação
da velha máxima "os países felizes não têm
história". O Estado de Direito não é um país feliz
em Portugal, ainda que seja evidente que noutras
partes do Mundo é tudo muitíssimo pior. A explicação
para o desinteresse é manifestamente cultural. Os
portugueses não gostam da Liberdade. Gostam da
anomia e até da anarquia. Ora a Liberdade é, também,
e em grande medida, o respeito das leis e nunca a
indiferença a elas.
Os anglo-saxónicos percebem isso melhor do que
ninguém. Países formados com base democrática mais
sólida do que na Europa continental usam a expressão
Rule of Law para designar o que, na nossa tradição,
chamamos "Estado de Direito". Gosto bem mais da
expressão inglesa, precisamente porque exprime com
muita pertinência a ideia de que a subordinação à
lei, que tem a sua base na vontade democrática, é um
elemento essencial de uma cultura de respeito pelos
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Portugal é um país onde, pelo contrário, há a
arreigada convicção de que a liberdade é não pagar
impostos, não respeitar limites de velocidade, não
obedecer a regras sobre condução com álcool no
sangue, não cumprir as regras sobre estacionamento,
não cumprir as normas urbanísticas, não cumprir as
regras sobre ambiente e paisagem, não respeitar as
leis e os regulamentos. No fundo, para os
portugueses, a Liberdade é o oposto da Rule of Law.
O "não" é para nós o nome da Liberdade, em vez de
ser o "sim".
Esta realidade é partilhada, como é evidente, pelos
cidadãos e pelos que devem fazer cumprir normas no
plano administrativo. Eles também se comportam,
quando estão fora do espaço dos poderes que exercem,
com a mesma naturalidade incumpridora. E, por isso,
para eles, obrigar os outros a cumprir regras não é
a expressão natural da subordinação à lei como forma
de Liberdade, mas apenas uma expressão de poder e de
autoridade. Obriga-se por vezes os cidadãos a
respeitar a lei, porque assim se demonstra quem
manda. Para concluir isto, basta analisar o
comportamento de polícias em questões de trânsito,
tantas vezes mais interessados em revelar a sua
importância do que em fazer respeitar as normas.
Por isso, também, as medidas preventivas contra o
desrespeito das leis são muito menos praticadas do
que as punitivas por causa do incumprimento das
normas. Tudo se passa como se a sociedade portuguesa
achasse que cumprir as leis tem a ver com um modelo
de lotaria. Em princípio, é normal que se não
cumpram. Os que são apanhados pagam o natural
tributo que o azar presta à anomia. O sistema
mantém-se, por isso, com base no cálculo das
probabilidades. Mentir, contornar as normas,
subornar a autoridade, corromper, tudo isso são
comportamentos perfeitamente tolerados pela nossa
cultura, pois, afinal, não exprimem mais do que
reacções indignadas dos que tiveram o azar de ser
apanhados, num universo muito amplo em que tantos
outros apenas por sorte se safaram.
O fenómeno da Quinta da Fonte, que tem estado na
ordem do dia, constitui um excelente exemplo do que
acabo de afirmar. Muitas famílias, desde que ali
foram instaladas, nunca pagaram a módica renda que
lhes foi - simbolicamente - atribuída. Muitas não
pagam sequer água e luz. Durante mais de 10 anos, a
autarquia local viveu com muita tranquilidade com
isso. No fundo, na convicção mais profunda dos que
deveriam actuar, a ideia de não pagar renda, água e
luz surge como um direito natural, apenas
contrariado hipoteticamente pela inveja. E como
demonstrar autoridade na Quinta da Fonte não é
propriamente tão fácil como no centro de Loures, a
melhor solução é deixar andar.
Na Quinta da Fonte, por acaso - o tal azar de que
atrás falei - foram filmadas pessoas armadas a
disparar em várias direcções. A evidência do
desrespeito das normas obrigou a agir. E foram
tomadas medidas que levantaram os naturais protestos
de quem acha que a liberdade é não respeitar regras.
Descobriram-se e foram apreendidas armas proibidas.
Mas tais armas estiveram postas em sossego (como até
certa altura também estava Inês de Castro) durante
anos sem que ninguém se preocupasse com isso
minimamente.
Na Quinta da Fonte, bandos de desordeiros destruíram
casas e património de terceiros. A comunidade
cigana, que foi vítima de tais actos, saiu da zona
com ruído. Não foi possível assobiar para o lado. A
liberdade de destruir e de não respeitar as leis que
o impedem foi considerada natural. No meio de
marchas pela paz e outras generosas iniciativas, não
ouvi uma única voz a dizer que quem se comporta
desse modo está a agir com a mesma lógica subjacente
aos que não pagam o que devem pelas casas que
habitam. E essa é a grande questão.
Se o sistema social não penaliza o incumprimento das
regras, se a prevenção não funciona, se o aparelho
de Estado é uma realidade distante e desinteressada,
se ninguém cumpre regra nenhuma, o que se pode
esperar senão o que se passou na Quinta da Fonte? Se
o Estado desaparece ou se está nas tintas, se nem
para mostrar que tem poder se incomoda, como
estranhar as guerras de "gangs", os poderes fácticos,
as coesões étnicas, as lutas de rua?
O Estado de Direito está doente em Portugal. A Rule
of Law ainda pior. Sobretudo porque os portugueses
nem parecem estar preocupados. Advogado