Público  - 25 Jul 08

 

A doença do Estado de Direito
José Miguel Júdice

 

Portugal é um país onde há a arreigada convicção de que a liberdade é não cumprir as regras

 

Ouve-se falar muito pouco de Estado de Direito em Portugal. Infelizmente, isso não se deve à aplicação da velha máxima "os países felizes não têm história". O Estado de Direito não é um país feliz em Portugal, ainda que seja evidente que noutras partes do Mundo é tudo muitíssimo pior. A explicação para o desinteresse é manifestamente cultural. Os portugueses não gostam da Liberdade. Gostam da anomia e até da anarquia. Ora a Liberdade é, também, e em grande medida, o respeito das leis e nunca a indiferença a elas.

 

Os anglo-saxónicos percebem isso melhor do que ninguém. Países formados com base democrática mais sólida do que na Europa continental usam a expressão Rule of Law para designar o que, na nossa tradição, chamamos "Estado de Direito". Gosto bem mais da expressão inglesa, precisamente porque exprime com muita pertinência a ideia de que a subordinação à lei, que tem a sua base na vontade democrática, é um elemento essencial de uma cultura de respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

 

Portugal é um país onde, pelo contrário, há a arreigada convicção de que a liberdade é não pagar impostos, não respeitar limites de velocidade, não obedecer a regras sobre condução com álcool no sangue, não cumprir as regras sobre estacionamento, não cumprir as normas urbanísticas, não cumprir as regras sobre ambiente e paisagem, não respeitar as leis e os regulamentos. No fundo, para os portugueses, a Liberdade é o oposto da Rule of Law. O "não" é para nós o nome da Liberdade, em vez de ser o "sim".

 

Esta realidade é partilhada, como é evidente, pelos cidadãos e pelos que devem fazer cumprir normas no plano administrativo. Eles também se comportam, quando estão fora do espaço dos poderes que exercem, com a mesma naturalidade incumpridora. E, por isso, para eles, obrigar os outros a cumprir regras não é a expressão natural da subordinação à lei como forma de Liberdade, mas apenas uma expressão de poder e de autoridade. Obriga-se por vezes os cidadãos a respeitar a lei, porque assim se demonstra quem manda. Para concluir isto, basta analisar o comportamento de polícias em questões de trânsito, tantas vezes mais interessados em revelar a sua importância do que em fazer respeitar as normas.

 

Por isso, também, as medidas preventivas contra o desrespeito das leis são muito menos praticadas do que as punitivas por causa do incumprimento das normas. Tudo se passa como se a sociedade portuguesa achasse que cumprir as leis tem a ver com um modelo de lotaria. Em princípio, é normal que se não cumpram. Os que são apanhados pagam o natural tributo que o azar presta à anomia. O sistema mantém-se, por isso, com base no cálculo das probabilidades. Mentir, contornar as normas, subornar a autoridade, corromper, tudo isso são comportamentos perfeitamente tolerados pela nossa cultura, pois, afinal, não exprimem mais do que reacções indignadas dos que tiveram o azar de ser apanhados, num universo muito amplo em que tantos outros apenas por sorte se safaram.

 

O fenómeno da Quinta da Fonte, que tem estado na ordem do dia, constitui um excelente exemplo do que acabo de afirmar. Muitas famílias, desde que ali foram instaladas, nunca pagaram a módica renda que lhes foi - simbolicamente - atribuída. Muitas não pagam sequer água e luz. Durante mais de 10 anos, a autarquia local viveu com muita tranquilidade com isso. No fundo, na convicção mais profunda dos que deveriam actuar, a ideia de não pagar renda, água e luz surge como um direito natural, apenas contrariado hipoteticamente pela inveja. E como demonstrar autoridade na Quinta da Fonte não é propriamente tão fácil como no centro de Loures, a melhor solução é deixar andar.

 

Na Quinta da Fonte, por acaso - o tal azar de que atrás falei - foram filmadas pessoas armadas a disparar em várias direcções. A evidência do desrespeito das normas obrigou a agir. E foram tomadas medidas que levantaram os naturais protestos de quem acha que a liberdade é não respeitar regras. Descobriram-se e foram apreendidas armas proibidas. Mas tais armas estiveram postas em sossego (como até certa altura também estava Inês de Castro) durante anos sem que ninguém se preocupasse com isso minimamente.

 

Na Quinta da Fonte, bandos de desordeiros destruíram casas e património de terceiros. A comunidade cigana, que foi vítima de tais actos, saiu da zona com ruído. Não foi possível assobiar para o lado. A liberdade de destruir e de não respeitar as leis que o impedem foi considerada natural. No meio de marchas pela paz e outras generosas iniciativas, não ouvi uma única voz a dizer que quem se comporta desse modo está a agir com a mesma lógica subjacente aos que não pagam o que devem pelas casas que habitam. E essa é a grande questão.

 

Se o sistema social não penaliza o incumprimento das regras, se a prevenção não funciona, se o aparelho de Estado é uma realidade distante e desinteressada, se ninguém cumpre regra nenhuma, o que se pode esperar senão o que se passou na Quinta da Fonte? Se o Estado desaparece ou se está nas tintas, se nem para mostrar que tem poder se incomoda, como estranhar as guerras de "gangs", os poderes fácticos, as coesões étnicas, as lutas de rua?

 

O Estado de Direito está doente em Portugal. A Rule of Law ainda pior. Sobretudo porque os portugueses nem parecem estar preocupados. Advogado