Já viste o carro novo dos do lado? No ano passado
foram de férias para o Brasil; agora, diz que é um
safari no Quénia. E ela, que só compra vestidos de
marca? Não sei onde arranjam dinheiro para levarem
esta vida..." O equivalente sofisticado desta
tagarelice mesquinha é a crítica moralista ao
endividamento das famílias portuguesas.
Por estes dias, toda a gente repete, com ar
entendido, que os portugueses vivem acima das suas
posses, mas eu gostaria que me explicassem que
consequências práticas daí pretendem retirar.
É certo que, não sendo compensado pela entrada de
investimento directo estrangeiro, o nosso défice da
balança de transacções correntes assume enorme
gravidade. Que fazer, então, para controlar os
excessivos níveis de consumo e de endividamento dos
particulares que contribuem para aumentá-lo? Assim,
de repente, ocorrem-me algumas hipóteses: a) exortar
os portugueses a pouparem mais; b) restringir a
importação de bens não essenciais; c) agravar as
taxas de juro; d) desvalorizar a moeda. Tudo
excelentes ideias, porém, impraticáveis.
Insistir na ideia de que, se os portugueses se
resignassem a consumir menos, o país entraria nos
eixos é, nas actuais circunstâncias, uma piedosa
intenção votada ao insucesso. Certos comentadores
recusam-se a aceitar que algumas formas de
ajustamento dos mercados são mais difíceis do que
outras; mas todos sabemos que é mais fácil aumentar
salários do que baixá-los, empregar pessoas do que
dispensá-las e aumentar o consumo do que baixá-lo.
E se, em vez de batermos com a cabeça nas paredes,
encarássemos antes a coisa de uma perspectiva
igualmente verdadeira, mas incomparavelmente mais
útil? E se, em vez de dizermos que gastamos acima
das nossas posses, sublinhássemos antes que
produzimos abaixo das nossas capacidades? Onde a
primeira formulação cria um muro psicológico que
fomenta o medo e paralisa a vontade, a segunda
oferece uma orientação positiva e mobiliza o esforço
colectivo. A forma como se diz as coisas tem
consequências. Temos um problema de produtividade
que não se deve, nem a trabalharmos pouco, nem a
investirmos de menos, antes a tirarmos medíocre
partido dos recursos produtivos, em boa parte por os
concentrarmos em actividades económicas de reduzido
potencial. A boa notícia é que, na presente década,
a nossa estrutura produtiva tem vindo a sofrer uma
rápida transformação, sem paralelo desde os anos 60.
Em poucos anos, a natureza do turismo alterou-se e
os têxteis foram substituídos, na liderança das
exportações, por máquinas e aparelhos eléctricos e
serviços às empresas. A balança tecnológica
tornou-se positiva. Em decorrência, o país
conquistou quotas de mercado, apesar de uma evolução
pouco favorável dos custos salariais unitários. O
défice externo, agora deteriorado por efeito da
crise internacional, reduziu-se de forma
progressiva, embora insuficiente. Podemos confiar
nas empresas e nos mercados para completarem esse
ajustamento, que políticas erradas no passado
atrasaram. Mas deveríamos questionar se o Estado
português estará a fazer tudo o que deve para
facilitar as mutações em curso.
Os desafios superam-se potenciando a capacidade
transformadora das nossas forças, não carpindo as
fraquezas. É mais produtivo mobilizar as pessoas
para fazerem coisas do que para se queixarem. É mais
fácil mobilizá-las com uma visão coerente do futuro
do que com ameaças de empobrecimento e resignação.
Entre nós, o nível do debate económico é
frequentemente rebaixado por insistentes prédicas
acerca dos vícios e virtudes dos nossos concidadãos,
porque esse tipo de abordagem não exige nem estudos
nem conhecimentos especializados, apenas requer
capacidade retórica.
A mudança de perspectiva que recomendo não equivale
a privilegiar o optimismo sobre o pessimismo, mas a
valorizar o pensamento produtivo em detrimento do
pensamento ocioso.