A propaganda que a ERC jamais contabilizará Eduardo Cintra Torres
ERC anunciou ao parlamento que alterou as regras de
contabilidade do "pluralismo político-partidário" na
TV. Segundo o Telejornal (02.07), passa a incluir na
conta dos partidos da oposição os "tempos dos
sindicatos e outras forças sociais que expedem
opiniões contra o governo".ERC anunciou ao
parlamento que alterou as regras de contabilidade do
"pluralismo político-partidário" na TV. Segundo o
Telejornal (02.07), passa a incluir na conta dos
partidos da oposição os "tempos dos sindicatos e
outras forças sociais que expedem opiniões contra o
governo". É mais uma anedota da ERC. Ao fazer o seu
primeiro relatório sobre a matéria, a ERC ter-se-á
surpreendido por encontrar uma cronometragem que não
interessava ao governo mostrar, isto é, que os
noticiários da RTP favorecem o executivo e
prejudicam o principal partido da oposição.
Para resolver o incómodo e impedir que a sua
contabilidade organizada volte a denunciar essas
funções primordiais da actual informação da RTP, a
ERC mudou as regras a meio do jogo: agora, quem quer
que fale contra o governo é "oposição". Esta espiral
de critérios subjectivos da ERC serve Sócrates e a
sua propaganda. No deve & haver duma contabilidade
insana, não sabemos, por exemplo, se as notícias de
economia em que populares ou economistas critiquem o
governo entrarão na conta da "oposição". E não
sabemos se as notícias da UGT, das centrais
patronais ou de empresas quando falam bem do governo
serão inscritas na conta do governo. Mas sabemos o
certo e sabido: o governo e a sua ERC não querem ter
surpresas desagradáveis no próximo relatório. A
informação da RTP terá que sair como virgem com flor
de laranjeira das continhas da ERC.
Este processo manhoso é uma das formas encontradas
para permitir que o governo siga beneficiado nos
noticiários da RTP. Há outros, e passam ao lado dos
contabilistas da ERC, por malícia ou incompetência.
A ERC baseia as análises nos tempos das notícias.
Ora o tempo é uma categoria associada ao texto dito
ou lido pelos jornalistas e protagonistas das
notícias. Os contabilistas da ERC "ouvem" os
noticiários e anotam os tempos que subjectivamente
consideram a favor ou contra este ou aquele.
A ERC nunca analisou a visualidade das notícias,
isto é, não toma em consideração a essência dos
noticiários: são produções audiovisuais, que não se
resumem ao dito, que também contêm imensa informação
visual e escrita. Uma telenotícia não é apenas som,
é um ecrã em movimento onde acontecem muitas coisas.
Por exemplo, os rodapés são hoje um processo
adicional na construção ideológica e informativa dos
noticiários. Embora telegráficos, são notícias em si
mesmas. E chegam a contrariar a própria notícia.
Ultimamente, muitos rodapés da RTP parecem escritos
e colocados por algum membro da central de
propaganda do governo. Analisemos alguns em voos
picados sobre os Telejornais (TJ) de 02.07, dia da
entrevista de Sócrates, e do dia seguinte.
Em 02.07, o TJ dedicou à entrevista de Sócrates,
antes de ele a dar, 3m43. Repito: antes. A
entrevista motivou três notícias (dois directos, um
ao estúdio vazio) e duas promoções. Entretanto, o TJ
não podia ignorar a entrevista da véspera de
Ferreira Leite à TVI. Não podia, mas quase o fez. A
notícia foi colocada como 28ª do alinhamento, na
segunda metade do noticiário, e teve 2m02, cerca de
metade do tempo dedicado à entrevista -- ainda não
realizada -- a Sócrates.
A ERC, se calhar, incluirá por inteiro a notícia da
entrevista de Ferreira Leite na conta do PSD. Mas
através da análise textual, que a ERC não faz,
compreende-se a grossura da propaganda nesta
notícia. O princípio e quase metade dedicaram-se,
não a excertos da entrevista da dirigente do PSD,
mas à resposta que lhe deu o governo através de
Mário Lino. Isto é, antes do facto, a resposta ao
facto. Veja-se a imagem, leiam-se os dizeres: quem
diria que a notícia é sobre a entrevista de Ferreira
Leite? (Foto 1). Só depois entrou Ferreira Leite. O
título que mais tempo esteve na notícia sobre
Ferreira Leite foi, incrivelmente, "Entrevista
Especial - José Sócrates dá 1º entrevista depois da
crise dos camionistas". E quase no final, enquanto
se ouvia o hino do PSD no último congresso, o rodapé
dizia: "PS acusa Ferreira Leite de não ter
alternativas" (Fotos 2 e 3).
Nesse dia, Sócrates respondeu a Ferreira Leite na
sua RTP, "entrevistado" por Judite Sousa e J. A.
Carvalho. "Na RTP", escreveu Daniel Sampaio na
PÚBLICA (13.07), "Sócrates beneficiou da passividade
dos jornalistas, incapazes de liderar o rumo da
entrevista ou de manifestar um mínimo de
contraditório. (...) impressionou ver profissionais
dos media incapazes de sair da teia montada pelo
entrevistado". Quer dizer, a entrevista falhou nas
funções do jornalismo e serviu os interesses do
entrevistado, não os dos espectadores. Uma vergonha
para o jornalismo português.
No dia seguinte, o TJ dedicou 6m15 à entrevista a
Sócrates, numa promoção e três notícias, dos quais
4m15 ao governo e 1m50 à oposição. A primeira
notícia abriu em falso, começando com o título
"Pacote fiscal: Municípios dizem que não podem ser
as famílias a pagar". Esse tema não chegou a passar,
tendo a Associação de Municípios protestado contra a
RTP. Em vez disso, noticiou-se a entrevista de
Sócrates. O rodapé inferior deu nota das reacções da
oposição, mas nunca o título principal foi dado aos
adversários como sucedeu na véspera com a entrevista
a Ferreira Leite.
Para cumprir calendário, seguiu-se uma notícia com
as reacções no parlamento à entrevista. Mas a
seguir, de forma subreptícia, o TJ fez uma segunda
notícia sobre a entrevista de Sócrates,
apresentando-a quase como uma resposta do
primeiro-ministro ao que a oposição dissera à tarde:
"José Sócrates reagiu às acusações de estar a fazer
grandes obras quando não há dinheiro". Na verdade, o
TJ usou essa manha para voltar à entrevista da
véspera com o objectivo de destacar as críticas de
Sócrates a Ferreira Leite, que falara na
antevéspera. O título mostrou durante quase dois
minutos foi "Primeiro-ministro critica discurso de
Manuela Ferreira Leite" e o rodapé inferior mostrou
frases de Sócrates ou doutros de crítica a Ferreira
Leite. Na imagem, viu-se Sócrates e grandes "obras
públicas" inexistentes: um TGV, um avião da TAP
ilustrando o novo aeroporto, uma auto-estrada em vez
de futuras barragens (Fotos 4 e 5).
Para mascarar o agravamento da crise naquele dia e
alindar o embrulho socratista, este TJ estava cheio
de "jornalismo positivo": dedicou uma promoção e
cinco notícias (14m48!) à libertação de Ingrid
Betancourt e outros reféns, com um directo a Paris.
As três primeiras notícias do TJ foram dedicadas a
esse tema. E qual foi a quarta? A promoção dum novo
filme de desenhos animados muita giros, notícia que
voltou ao TJ antes do fecho, num total de dois
minutos. O país das maravilhas e da modernidade. A
ERC, entretanto, vai fazer as suas continhas. Mal
posso esperar.