Público - 19 Jul 08

 

A propaganda que a ERC jamais contabilizará
Eduardo Cintra Torres

 

ERC anunciou ao parlamento que alterou as regras de contabilidade do "pluralismo político-partidário" na TV. Segundo o Telejornal (02.07), passa a incluir na conta dos partidos da oposição os "tempos dos sindicatos e outras forças sociais que expedem opiniões contra o governo".ERC anunciou ao parlamento que alterou as regras de contabilidade do "pluralismo político-partidário" na TV. Segundo o Telejornal (02.07), passa a incluir na conta dos partidos da oposição os "tempos dos sindicatos e outras forças sociais que expedem opiniões contra o governo". É mais uma anedota da ERC. Ao fazer o seu primeiro relatório sobre a matéria, a ERC ter-se-á surpreendido por encontrar uma cronometragem que não interessava ao governo mostrar, isto é, que os noticiários da RTP favorecem o executivo e prejudicam o principal partido da oposição.

 

Para resolver o incómodo e impedir que a sua contabilidade organizada volte a denunciar essas funções primordiais da actual informação da RTP, a ERC mudou as regras a meio do jogo: agora, quem quer que fale contra o governo é "oposição". Esta espiral de critérios subjectivos da ERC serve Sócrates e a sua propaganda. No deve & haver duma contabilidade insana, não sabemos, por exemplo, se as notícias de economia em que populares ou economistas critiquem o governo entrarão na conta da "oposição". E não sabemos se as notícias da UGT, das centrais patronais ou de empresas quando falam bem do governo serão inscritas na conta do governo. Mas sabemos o certo e sabido: o governo e a sua ERC não querem ter surpresas desagradáveis no próximo relatório. A informação da RTP terá que sair como virgem com flor de laranjeira das continhas da ERC.

 

Este processo manhoso é uma das formas encontradas para permitir que o governo siga beneficiado nos noticiários da RTP. Há outros, e passam ao lado dos contabilistas da ERC, por malícia ou incompetência. A ERC baseia as análises nos tempos das notícias. Ora o tempo é uma categoria associada ao texto dito ou lido pelos jornalistas e protagonistas das notícias. Os contabilistas da ERC "ouvem" os noticiários e anotam os tempos que subjectivamente consideram a favor ou contra este ou aquele.

 

A ERC nunca analisou a visualidade das notícias, isto é, não toma em consideração a essência dos noticiários: são produções audiovisuais, que não se resumem ao dito, que também contêm imensa informação visual e escrita. Uma telenotícia não é apenas som, é um ecrã em movimento onde acontecem muitas coisas.

 

Por exemplo, os rodapés são hoje um processo adicional na construção ideológica e informativa dos noticiários. Embora telegráficos, são notícias em si mesmas. E chegam a contrariar a própria notícia. Ultimamente, muitos rodapés da RTP parecem escritos e colocados por algum membro da central de propaganda do governo. Analisemos alguns em voos picados sobre os Telejornais (TJ) de 02.07, dia da entrevista de Sócrates, e do dia seguinte.

 

Em 02.07, o TJ dedicou à entrevista de Sócrates, antes de ele a dar, 3m43. Repito: antes. A entrevista motivou três notícias (dois directos, um ao estúdio vazio) e duas promoções. Entretanto, o TJ não podia ignorar a entrevista da véspera de Ferreira Leite à TVI. Não podia, mas quase o fez. A notícia foi colocada como 28ª do alinhamento, na segunda metade do noticiário, e teve 2m02, cerca de metade do tempo dedicado à entrevista -- ainda não realizada -- a Sócrates.

 

A ERC, se calhar, incluirá por inteiro a notícia da entrevista de Ferreira Leite na conta do PSD. Mas através da análise textual, que a ERC não faz, compreende-se a grossura da propaganda nesta notícia. O princípio e quase metade dedicaram-se, não a excertos da entrevista da dirigente do PSD, mas à resposta que lhe deu o governo através de Mário Lino. Isto é, antes do facto, a resposta ao facto. Veja-se a imagem, leiam-se os dizeres: quem diria que a notícia é sobre a entrevista de Ferreira Leite? (Foto 1). Só depois entrou Ferreira Leite. O título que mais tempo esteve na notícia sobre Ferreira Leite foi, incrivelmente, "Entrevista Especial - José Sócrates dá 1º entrevista depois da crise dos camionistas". E quase no final, enquanto se ouvia o hino do PSD no último congresso, o rodapé dizia: "PS acusa Ferreira Leite de não ter alternativas" (Fotos 2 e 3).

 

Nesse dia, Sócrates respondeu a Ferreira Leite na sua RTP, "entrevistado" por Judite Sousa e J. A. Carvalho. "Na RTP", escreveu Daniel Sampaio na PÚBLICA (13.07), "Sócrates beneficiou da passividade dos jornalistas, incapazes de liderar o rumo da entrevista ou de manifestar um mínimo de contraditório. (...) impressionou ver profissionais dos media incapazes de sair da teia montada pelo entrevistado". Quer dizer, a entrevista falhou nas funções do jornalismo e serviu os interesses do entrevistado, não os dos espectadores. Uma vergonha para o jornalismo português.

 

No dia seguinte, o TJ dedicou 6m15 à entrevista a Sócrates, numa promoção e três notícias, dos quais 4m15 ao governo e 1m50 à oposição. A primeira notícia abriu em falso, começando com o título "Pacote fiscal: Municípios dizem que não podem ser as famílias a pagar". Esse tema não chegou a passar, tendo a Associação de Municípios protestado contra a RTP. Em vez disso, noticiou-se a entrevista de Sócrates. O rodapé inferior deu nota das reacções da oposição, mas nunca o título principal foi dado aos adversários como sucedeu na véspera com a entrevista a Ferreira Leite.

 

Para cumprir calendário, seguiu-se uma notícia com as reacções no parlamento à entrevista. Mas a seguir, de forma subreptícia, o TJ fez uma segunda notícia sobre a entrevista de Sócrates, apresentando-a quase como uma resposta do primeiro-ministro ao que a oposição dissera à tarde: "José Sócrates reagiu às acusações de estar a fazer grandes obras quando não há dinheiro". Na verdade, o TJ usou essa manha para voltar à entrevista da véspera com o objectivo de destacar as críticas de Sócrates a Ferreira Leite, que falara na antevéspera. O título mostrou durante quase dois minutos foi "Primeiro-ministro critica discurso de Manuela Ferreira Leite" e o rodapé inferior mostrou frases de Sócrates ou doutros de crítica a Ferreira Leite. Na imagem, viu-se Sócrates e grandes "obras públicas" inexistentes: um TGV, um avião da TAP ilustrando o novo aeroporto, uma auto-estrada em vez de futuras barragens (Fotos 4 e 5).

 

Para mascarar o agravamento da crise naquele dia e alindar o embrulho socratista, este TJ estava cheio de "jornalismo positivo": dedicou uma promoção e cinco notícias (14m48!) à libertação de Ingrid Betancourt e outros reféns, com um directo a Paris. As três primeiras notícias do TJ foram dedicadas a esse tema. E qual foi a quarta? A promoção dum novo filme de desenhos animados muita giros, notícia que voltou ao TJ antes do fecho, num total de dois minutos. O país das maravilhas e da modernidade. A ERC, entretanto, vai fazer as suas continhas. Mal posso esperar.