Público - 12 Jul 08

 

Em cima de que cabeça vai cair o betão que aí vem?
José Manuel Fernandes

 

Mário Lino e José Sócrates deviam dar atenção a alguns conselhos de elementar bom senso que esta semana lhes enviou João Cravinho

 

João Cravinho, provavelmente um dos homens que em Portugal defendem com mais convicção a bondade dos investimentos públicos como factores de desenvolvimento, disse na quarta-feira que o Governo tem a obrigação de explicar e de justificar ao País a política dos grandes investimentos públicos. Não apenas ao PSD, nem apenas ao Presidente da República: ao país. Porquê? Porque "as conjunturas vão variando" e "há projectos que foram lançados numa determinada época e depois, com o tempo, as coisas tiveram um outro sentido".

 

O antigo ministro das Obras Públicas, um socialista não-socrático "exilado" em Londres, não fez estas declarações para agradar à sua antiga parceira de debate na Renascença, pois até lhe dirigiu críticas por ter colaborado na decisão tomada na cimeira ibérica da Figueira da Foz relativamente ao TGV. Contudo, uma coisa são as diferenças entre os partidos, e as solidariedades no interior do partido a que João Cravinho pertence, outra falar com um mínimo de honestidade e conhecimento de facto.

 

Na verdade, pode-se contestar a ideia de que a simples existência de investimentos públicos na construção de infra-estruturas é importante para o desenvolvimento da economia. Para muitos, isso era verdade há 30 ou há 20 anos, mas já não é hoje. Mas mesmo sem entrar nessa discussão, que é essencial mas não tem sido o centro das polémicas, é importante responder a duas questões que andam no ar. A primeira é a de saber se há dinheiro para a enxurrada de obras públicas que o Governo se prepara para lançar. A segunda é a de perceber se estas têm sustentabilidade a médio e longo prazo.

 

O argumento que tem sido utilizado pelos defensores de que há dinheiro é que não é preciso haver hoje dinheiro no Orçamento do Estado, basta que os privados se mostrem disponíveis para investir. Foi este o principal argumento desenvolvido por Vital Moreira no seu artigo A grande mistificação editado na passada terça-feira neste jornal. "Para haver investimento em infra-estruturas públicas não é necessário ter dinheiro público disponível nem sequer recorrer ao endividamento público, bastando optar pelo investimento privado no quadro de 'parcerias público-privadas'", argumentou o jurista. Na sua opinião, essas parcerias seriam tão milagrosas que o Estado deixaria mesmo de ter, a certa altura, "encargos orçamentais com as estradas".

 

Não querendo discutir se esta última previsão algum dia se poderia concretizar - o que faria de Portugal um caso único no Mundo... - importa ver o que disse João Cravinho sobre o argumento de que, faltando dinheiro ao Estado, este não faltaria aos privados. Vale a pena citá-lo um pouco mais longamente: "Estou em desacordo com a ideia de que tudo se resume a saber se há dinheiro no Orçamento, pois não se fazem investimentos desta natureza apenas porque há dinheiro nos privados. E o haver dinheiro nos privados é uma matéria que, neste caso concreto, não é indiferente à política pública. Porque, entre outras coisas, os privados teriam de endividar-se extraordinariamente no estrangeiro. E, portanto, ao endividarem-se, fariam com que a dívida continuasse a subir, criando uma situação de insustentabilidade ao crescimento do País". Ou seja, traduzindo da linguagem do engenheiro para a do jurista ou, melhor, para a do cidadão comum: Portugal está já muito endividado ao estrangeiro; os bancos portugueses estão igualmente endividados; os privados não têm liquidez para construir nem sequer uma fracção do que se quer construir, pelo que teriam de recorrer ao crédito, e este acabaria sempre por vir do estrangeiro; numa situação de fortes constrangimentos à concessão de créditos elevados, os privados acabariam por suportar taxas de juro mais elevadas do que as previstas nos famosos estudos; pior do que isso, havendo escassez de crédito, canalizar o que ainda se poderá arranjar para construir auto-estradas e o TGV significaria que faltaria depois liquidez ao nosso sistema bancário para financiar os investimentos que realmente criam riqueza. É por saber que o sistema funciona desta forma que o ex-ministro das Obras Públicas que mais apostou nas parcerias "público-privadas" mete travões e alerta para o facto de optar por investir em mais betão, mesmo sendo isso feito por privados, constituirá um problema para o crescimento do país, pois faltará dinheiro para os outros investimentos.

 

Admitamos, mesmo assim, que existe no Orçamento do Estado e no sector privado folga suficiente para realizar alguns destes investimentos, admitamos também que essa folga é suficientemente grande para construir uma auto-estrada a atravessar Trás-os-Montes, uma região do país tão desertificada que este mesmo Governo andou por lá, e bem, a fechar escolas sem alunos e serviços hospitalares com poucos doentes. Apesar deste exercício de imaginação desafiar o bom senso, faltará sempre saber se as estradas previstas num Plano Rodoviário Nacional desenhado há muitos anos ou os planos para o TGV aprovados na Figueira da Foz continuam a fazer sentido (e se têm a mesma urgência).

 

No debate do Estado da Nação, o primeiro-ministro acenou com estudos de 2003, do tempo do governo PSD/CDS, para dizer que todos tinham obrigação de os conhecer. Fez mal: esses estudos não valem virtualmente nada, pois grande parte dos seus pressupostos (taxa de crescimento da economia, custo do financiamento, índices de mobilidade) foi radicalmente alterada. Valerão tanto ou menos do que as folhas A4 pedidas pelo deputado Paulo Rangel, numa saída especialmente infeliz.

 

É por isso que há contas a prestar e explicações a dar, seguindo a sugestão de Cravinho: o país nem se pode dar ao luxo de delapidar dinheiro que não tem (que os portugueses não têm), mesmo que isso obrigue o PSD a vir dizer primeiro que obras públicas não quer fazer, mesmo que depois José Sócrates tenha de engolir algumas das promessas que andou a fazer pelo país. Se isso não for feito, pode não nos cair o céu em cima da cabeça, mas se Mário Lino já teve de engolir tantos quilómetros cúbicos de aterros quando foi obrigado a desistir da Ota, bem pode agora digerir umas toneladas de betão para que estas não caiam na cabeça de quem nos dirige, de quem nos quer vir a dirigir ou mesmo de nós todos, os que pagamos impostos.