Em cima de que cabeça vai cair o betão que aí
vem? José Manuel Fernandes
Mário Lino e José Sócrates deviam dar atenção a
alguns conselhos de elementar bom senso que esta
semana lhes enviou João Cravinho
João Cravinho, provavelmente um dos homens que em
Portugal defendem com mais convicção a bondade dos
investimentos públicos como factores de
desenvolvimento, disse na quarta-feira que o Governo
tem a obrigação de explicar e de justificar ao País
a política dos grandes investimentos públicos. Não
apenas ao PSD, nem apenas ao Presidente da
República: ao país. Porquê? Porque "as conjunturas
vão variando" e "há projectos que foram lançados
numa determinada época e depois, com o tempo, as
coisas tiveram um outro sentido".
O antigo ministro das Obras Públicas, um socialista
não-socrático "exilado" em Londres, não fez estas
declarações para agradar à sua antiga parceira de
debate na Renascença, pois até lhe dirigiu críticas
por ter colaborado na decisão tomada na cimeira
ibérica da Figueira da Foz relativamente ao TGV.
Contudo, uma coisa são as diferenças entre os
partidos, e as solidariedades no interior do partido
a que João Cravinho pertence, outra falar com um
mínimo de honestidade e conhecimento de facto.
Na verdade, pode-se contestar a ideia de que a
simples existência de investimentos públicos na
construção de infra-estruturas é importante para o
desenvolvimento da economia. Para muitos, isso era
verdade há 30 ou há 20 anos, mas já não é hoje. Mas
mesmo sem entrar nessa discussão, que é essencial
mas não tem sido o centro das polémicas, é
importante responder a duas questões que andam no
ar. A primeira é a de saber se há dinheiro para a
enxurrada de obras públicas que o Governo se prepara
para lançar. A segunda é a de perceber se estas têm
sustentabilidade a médio e longo prazo.
O argumento que tem sido utilizado pelos defensores
de que há dinheiro é que não é preciso haver hoje
dinheiro no Orçamento do Estado, basta que os
privados se mostrem disponíveis para investir. Foi
este o principal argumento desenvolvido por Vital
Moreira no seu artigo A grande mistificação editado
na passada terça-feira neste jornal. "Para haver
investimento em infra-estruturas públicas não é
necessário ter dinheiro público disponível nem
sequer recorrer ao endividamento público, bastando
optar pelo investimento privado no quadro de
'parcerias público-privadas'", argumentou o jurista.
Na sua opinião, essas parcerias seriam tão
milagrosas que o Estado deixaria mesmo de ter, a
certa altura, "encargos orçamentais com as
estradas".
Não querendo discutir se esta última previsão algum
dia se poderia concretizar - o que faria de Portugal
um caso único no Mundo... - importa ver o que disse
João Cravinho sobre o argumento de que, faltando
dinheiro ao Estado, este não faltaria aos privados.
Vale a pena citá-lo um pouco mais longamente: "Estou
em desacordo com a ideia de que tudo se resume a
saber se há dinheiro no Orçamento, pois não se fazem
investimentos desta natureza apenas porque há
dinheiro nos privados. E o haver dinheiro nos
privados é uma matéria que, neste caso concreto, não
é indiferente à política pública. Porque, entre
outras coisas, os privados teriam de endividar-se
extraordinariamente no estrangeiro. E, portanto, ao
endividarem-se, fariam com que a dívida continuasse
a subir, criando uma situação de insustentabilidade
ao crescimento do País". Ou seja, traduzindo da
linguagem do engenheiro para a do jurista ou,
melhor, para a do cidadão comum: Portugal está já
muito endividado ao estrangeiro; os bancos
portugueses estão igualmente endividados; os
privados não têm liquidez para construir nem sequer
uma fracção do que se quer construir, pelo que
teriam de recorrer ao crédito, e este acabaria
sempre por vir do estrangeiro; numa situação de
fortes constrangimentos à concessão de créditos
elevados, os privados acabariam por suportar taxas
de juro mais elevadas do que as previstas nos
famosos estudos; pior do que isso, havendo escassez
de crédito, canalizar o que ainda se poderá arranjar
para construir auto-estradas e o TGV significaria
que faltaria depois liquidez ao nosso sistema
bancário para financiar os investimentos que
realmente criam riqueza. É por saber que o sistema
funciona desta forma que o ex-ministro das Obras
Públicas que mais apostou nas parcerias "público-privadas"
mete travões e alerta para o facto de optar por
investir em mais betão, mesmo sendo isso feito por
privados, constituirá um problema para o crescimento
do país, pois faltará dinheiro para os outros
investimentos.
Admitamos, mesmo assim, que existe no Orçamento do
Estado e no sector privado folga suficiente para
realizar alguns destes investimentos, admitamos
também que essa folga é suficientemente grande para
construir uma auto-estrada a atravessar
Trás-os-Montes, uma região do país tão desertificada
que este mesmo Governo andou por lá, e bem, a fechar
escolas sem alunos e serviços hospitalares com
poucos doentes. Apesar deste exercício de imaginação
desafiar o bom senso, faltará sempre saber se as
estradas previstas num Plano Rodoviário Nacional
desenhado há muitos anos ou os planos para o TGV
aprovados na Figueira da Foz continuam a fazer
sentido (e se têm a mesma urgência).
No debate do Estado da Nação, o primeiro-ministro
acenou com estudos de 2003, do tempo do governo PSD/CDS,
para dizer que todos tinham obrigação de os
conhecer. Fez mal: esses estudos não valem
virtualmente nada, pois grande parte dos seus
pressupostos (taxa de crescimento da economia, custo
do financiamento, índices de mobilidade) foi
radicalmente alterada. Valerão tanto ou menos do que
as folhas A4 pedidas pelo deputado Paulo Rangel,
numa saída especialmente infeliz.
É por isso que há contas a prestar e explicações a
dar, seguindo a sugestão de Cravinho: o país nem se
pode dar ao luxo de delapidar dinheiro que não tem
(que os portugueses não têm), mesmo que isso obrigue
o PSD a vir dizer primeiro que obras públicas não
quer fazer, mesmo que depois José Sócrates tenha de
engolir algumas das promessas que andou a fazer pelo
país. Se isso não for feito, pode não nos cair o céu
em cima da cabeça, mas se Mário Lino já teve de
engolir tantos quilómetros cúbicos de aterros quando
foi obrigado a desistir da Ota, bem pode agora
digerir umas toneladas de betão para que estas não
caiam na cabeça de quem nos dirige, de quem nos quer
vir a dirigir ou mesmo de nós todos, os que pagamos
impostos.