Vamos lá concretizar um pouco as medidas de
Sócrates José Manuel Fernandes
Vale a pena passar a pente fino as "reformas" ontem
anunciadas. É que o seu impacto real pode ser bem
menor do que as vestes vistosas em que surgiram
embrulhadas
Entre 2005 e 2007, o peso da carga fiscal aumentou,
a preços constantes, entre 2,8 e 2,9 mil milhões de
euros. Cerca de três pontes Vasco da Gama. Contudo
ontem, no Parlamento, o primeiro-ministro
classificou duas vezes como "imoderado" o aumento do
Imposto Municipal de Imóveis, IMI, que, este ano,
representa cinco por cento do que os cidadãos
pagarão a mais em impostos face ao que pagavam
quanto este Governo tomou posse. Isso não impediu
José Sócrates de acrescentar que o IMI é um
"paradigma de punção fiscal sobre as classes
médias".
A desproporção entre o impacto do IMI e a ênfase com
que o líder do Governo a ele se referiu só é
explicável porque Sócrates não foi ao Parlamento
falar do Estado da Nação: foi atacar a oposição, e o
PSD em particular, e apresentar um conjunto de
medidas avulsas, sonantes, mas de impacto mais
reduzido do que o anunciado.
Todo o discurso teve esta linha de orientação.
Depois de Manuela Ferreira Leite ter chegado à
liderança do PSD com um discurso centrado nas
questões sociais, Sócrates sentiu a necessidade de
inflectir de forma radical o seu discurso. Basta
recordar que, na sua mensagem de Natal, quando
muitos dos sinais da crise já eram mais do que
evidentes, ele ainda garantia que tinha preparado "a
nossa economia para os desafios e incertezas da
economia global". Não o tinha feito, nem o faz, como
entra pelos olhos dentro, e por isso, apesar de ter
garantido que "o essencial é manter o rumo -
reformas, rigor, incentivo à economia, prioridade à
educação e à protecção social", no essencial só
falou de protecção social. E acrescentou uma nota
demagógica que representa um sinal errado enviado
aos agentes económicos.
Mesmo assim, vale a pena ir aos detalhes.
O IMI. Este imposto representou uma reforma
importante, pois os proprietários deixaram de pagar
em função dos valores constantes nas matrizes
prediais (que beneficiavam os que viviam em casas
antigas e prejudicavam os que viviam em casas novas)
e passaram a pagar em função de uma avaliação
realista. O objectivo era manter constante a receita
dos municípios, mas isso não aconteceu.
Justificar-se-ia, pois, verificar o que está mal nos
mecanismos da lei, não aplicar uma medida cega como
a ontem anunciada, que nem sequer beneficia todos
por igual (as taxas em vigor em Lisboa, por exemplo,
já são as estabelecidas pelo Governo) e que, no
essencial, permite ao executivo fazer a festa com
receitas que são dos municípios.
As deduções no IRS podem vir a ter algum impacto,
mas mitigado, pois, nos dois escalões mais baixos,
os contribuintes já praticamente não pagam IRS. Nos
outros dois escalões, não abrangem todas as centenas
de milhar de famílias referidas pelo ministro das
Finanças, pois nem todas suportam empréstimos. Como
o impacto no OE será mínimo, isso que significa que
o alívio no bolso dos cidadãos também será moderado.
E só se notará daqui por um ano, quando vierem os
acertos do IRS de 2008. Com as eleições à porta...
Os passes escolares. Trata-se de uma boa ideia, se
bem que tenha sido apresentada de uma forma que é
muito difícil calcular o seu real impacto. O
primeiro-ministro prometeu uma "redução para metade
do valor mensal da assinatura de cada tipo de
transporte" e deu o exemplo do passe mais caro da
região de Lisboa, um passe que dificilmente será
utilizado pela população abrangida. Porém, omitiu
que, até aos 12 anos, todas as crianças já têm um
desconto de 28 por cento nesse e noutros passes
semelhantes. E que, em Coimbra, o desconto do passe
social para estudantes é de 33 por cento. Ou seja, o
impacto pode ser menor do que aquele que foi
pomposamente anunciado. E aquilo que um dia
gostávamos de ouvir discutir - a utilidade de
existir uma rede de transportes escolares com as
características universais dos "autocarros amarelos"
dos Estados Unidos - voltou de novo a ser esquecido.
A acção social escolar. Os números impressionantes
que José Sócrates apresentou traduzem, antes do
mais, a ineficácia dos nossos sistemas públicos, o
efeito da burocracia reinante. Na verdade, é difícil
calcular, com os dados fornecidos pelo
primeiro-ministro, se ocorreu ou não um alargamento
da base de incidência dos apoios, já que a lógica
dos escalões da acção social escolar e do abono de
família é diferente. Aparentemente, haveria muitos
pais que não concorriam aos apoios apenas porque o
processo era complexo. É bom que se tenha tornado
mais fácil, mas induz em erro dizer que, no primeiro
escalão, se tem direito "à totalidade dos apoios em
refeições, manuais e material escolar", como fez
Sócrates. A frase cria a ideia de uma
comparticipação total, quando, por exemplo, o apoio,
para todo o ano, dado para a compra de material
escolar aos alunos do 2.º ciclo do básico é de
apenas 10 euros.
O imposto "Robin dos Bosques". Esta ideia de
Berlusconi é bastante demagógica, e mais demagógica
ainda é a garantia do primeiro-ministro de que não
deixará as petrolíferas recuperarem no preço dos
combustíveis o que possam vir a perder por pagarem
mais aquele imposto. Basta notar, por exemplo, que
os resultados da Galp desceram no primeiro trimestre
de 2008, antes do imposto. Se voltarem a descer,
como vai o Governo saber - a não ser que
renacionalize a empresa - se os preços subiram para
compensar o imposto?
Mesmo assim, se esta taxa render 100 milhões de
euros, como ontem antecipou José Sócrates, é bem
provável que mais do que compense as medidas avulsas
tomadas na área social, isto é, que o Estado, para
além de lucrar com o IVA que cobra a mais por os
combustíveis estarem mais caros, ainda acabe por ter
um balanço financeiro positivo na aplicação "pacote
social". O Estado não, o Estado central, que as
autarquias terão sempre de suportar os efeitos da
redução do IMI.