Público - 11 Jul 08

 

Vamos lá concretizar um pouco as medidas de Sócrates
José Manuel Fernandes

 

Vale a pena passar a pente fino as "reformas" ontem anunciadas. É que o seu impacto real pode ser bem menor do que as vestes vistosas em que surgiram embrulhadas

 

Entre 2005 e 2007, o peso da carga fiscal aumentou, a preços constantes, entre 2,8 e 2,9 mil milhões de euros. Cerca de três pontes Vasco da Gama. Contudo ontem, no Parlamento, o primeiro-ministro classificou duas vezes como "imoderado" o aumento do Imposto Municipal de Imóveis, IMI, que, este ano, representa cinco por cento do que os cidadãos pagarão a mais em impostos face ao que pagavam quanto este Governo tomou posse. Isso não impediu José Sócrates de acrescentar que o IMI é um "paradigma de punção fiscal sobre as classes médias".

 

A desproporção entre o impacto do IMI e a ênfase com que o líder do Governo a ele se referiu só é explicável porque Sócrates não foi ao Parlamento falar do Estado da Nação: foi atacar a oposição, e o PSD em particular, e apresentar um conjunto de medidas avulsas, sonantes, mas de impacto mais reduzido do que o anunciado.

 

Todo o discurso teve esta linha de orientação. Depois de Manuela Ferreira Leite ter chegado à liderança do PSD com um discurso centrado nas questões sociais, Sócrates sentiu a necessidade de inflectir de forma radical o seu discurso. Basta recordar que, na sua mensagem de Natal, quando muitos dos sinais da crise já eram mais do que evidentes, ele ainda garantia que tinha preparado "a nossa economia para os desafios e incertezas da economia global". Não o tinha feito, nem o faz, como entra pelos olhos dentro, e por isso, apesar de ter garantido que "o essencial é manter o rumo - reformas, rigor, incentivo à economia, prioridade à educação e à protecção social", no essencial só falou de protecção social. E acrescentou uma nota demagógica que representa um sinal errado enviado aos agentes económicos.

 

Mesmo assim, vale a pena ir aos detalhes.

 

O IMI. Este imposto representou uma reforma importante, pois os proprietários deixaram de pagar em função dos valores constantes nas matrizes prediais (que beneficiavam os que viviam em casas antigas e prejudicavam os que viviam em casas novas) e passaram a pagar em função de uma avaliação realista. O objectivo era manter constante a receita dos municípios, mas isso não aconteceu. Justificar-se-ia, pois, verificar o que está mal nos mecanismos da lei, não aplicar uma medida cega como a ontem anunciada, que nem sequer beneficia todos por igual (as taxas em vigor em Lisboa, por exemplo, já são as estabelecidas pelo Governo) e que, no essencial, permite ao executivo fazer a festa com receitas que são dos municípios.

 

As deduções no IRS podem vir a ter algum impacto, mas mitigado, pois, nos dois escalões mais baixos, os contribuintes já praticamente não pagam IRS. Nos outros dois escalões, não abrangem todas as centenas de milhar de famílias referidas pelo ministro das Finanças, pois nem todas suportam empréstimos. Como o impacto no OE será mínimo, isso que significa que o alívio no bolso dos cidadãos também será moderado. E só se notará daqui por um ano, quando vierem os acertos do IRS de 2008. Com as eleições à porta...

 

Os passes escolares. Trata-se de uma boa ideia, se bem que tenha sido apresentada de uma forma que é muito difícil calcular o seu real impacto. O primeiro-ministro prometeu uma "redução para metade do valor mensal da assinatura de cada tipo de transporte" e deu o exemplo do passe mais caro da região de Lisboa, um passe que dificilmente será utilizado pela população abrangida. Porém, omitiu que, até aos 12 anos, todas as crianças já têm um desconto de 28 por cento nesse e noutros passes semelhantes. E que, em Coimbra, o desconto do passe social para estudantes é de 33 por cento. Ou seja, o impacto pode ser menor do que aquele que foi pomposamente anunciado. E aquilo que um dia gostávamos de ouvir discutir - a utilidade de existir uma rede de transportes escolares com as características universais dos "autocarros amarelos" dos Estados Unidos - voltou de novo a ser esquecido.

 

A acção social escolar. Os números impressionantes que José Sócrates apresentou traduzem, antes do mais, a ineficácia dos nossos sistemas públicos, o efeito da burocracia reinante. Na verdade, é difícil calcular, com os dados fornecidos pelo primeiro-ministro, se ocorreu ou não um alargamento da base de incidência dos apoios, já que a lógica dos escalões da acção social escolar e do abono de família é diferente. Aparentemente, haveria muitos pais que não concorriam aos apoios apenas porque o processo era complexo. É bom que se tenha tornado mais fácil, mas induz em erro dizer que, no primeiro escalão, se tem direito "à totalidade dos apoios em refeições, manuais e material escolar", como fez Sócrates. A frase cria a ideia de uma comparticipação total, quando, por exemplo, o apoio, para todo o ano, dado para a compra de material escolar aos alunos do 2.º ciclo do básico é de apenas 10 euros.

 

O imposto "Robin dos Bosques". Esta ideia de Berlusconi é bastante demagógica, e mais demagógica ainda é a garantia do primeiro-ministro de que não deixará as petrolíferas recuperarem no preço dos combustíveis o que possam vir a perder por pagarem mais aquele imposto. Basta notar, por exemplo, que os resultados da Galp desceram no primeiro trimestre de 2008, antes do imposto. Se voltarem a descer, como vai o Governo saber - a não ser que renacionalize a empresa - se os preços subiram para compensar o imposto?

 

Mesmo assim, se esta taxa render 100 milhões de euros, como ontem antecipou José Sócrates, é bem provável que mais do que compense as medidas avulsas tomadas na área social, isto é, que o Estado, para além de lucrar com o IVA que cobra a mais por os combustíveis estarem mais caros, ainda acabe por ter um balanço financeiro positivo na aplicação "pacote social". O Estado não, o Estado central, que as autarquias terão sempre de suportar os efeitos da redução do IMI.