Público - 10 Jul 08

 

A eterna relatividade das obrigações fiscais
Paulo Ferreira

 

Cada perdão fiscal é uma machadada numa coisa básica que o país demora a entender: as contas são mesmo para pagar

 

Chamam-lhe operações especiais de regularização de dívidas fiscais. Mas não são mais do que perdões de multas, juros ou de outras sanções a quem fica a dever dinheiro dos impostos ao Estado, num estímulo para que as contas sejam saldadas.

 

O perdão fiscal que este Governo está a preparar para as dívidas que estão a ser contestadas em tribunal vai ser o quarto em 14 anos. Temos assistido, certamente não por acaso, a um desses perdões em cada ciclo de governação.

 

E todos têm, pelo menos, duas características que os unem: são sempre apresentados como "a última oportunidade" para os contribuintes faltosos regularizarem as suas dívidas e são sempre embrulhados numa justificação simpática.

 

Em 1994, foi Eduardo Catroga que, com o pretexto da alteração da lei, que passou a criminalizar a retenção de impostos não entregues ao Estado (como o IVA ou o IRS), passar uma esponja sobre o assunto e permitir que as dívidas ao fisco fossem pagas sem penalizações adicionais.

 

Mudou o Governo e chegou António Guterres. Augusto Mateus, o seu segundo ministro da Economia. deu nome a mais um plano, o Plano Mateus. Tudo começou com a vontade de resolver o problema das dívidas dos clubes de futebol ao Estado. Mas, perante o escândalo de tratamento diferenciado a esse sector pouco recomendável, acabou num perdão para toda a gente.

 

Em 2002, foi a vez de Manuela Ferreira Leite dar novas facilidades para a regularização de dívidas com o objectivo descarado de aumentar as receitas do Estado na recta final do ano, numa altura de descalabro orçamental.

 

E agora, depois de mais uma alternância no poder, está um novo regime em preparação para convidar contribuintes faltosos a regularizar o que ficaram a dever. Desta vez há uma diferença. O esquema deverá aplicar-se apenas a dívidas que estejam a ser contestadas em tribunal, o que levanta logo a primeira dúvida: vai contribuir para a redução ou para o aumento da litigância fiscal na justiça?

 

Como se vê, não têm faltado justificações para cada governo de turno avançar com o seu perdão fiscal. O que falta a cada um deles são boas razões.

 

É verdade que com estas acções entraram centenas de milhões de euros nos cofres do Estado que, provavelmente, nunca entrariam sem essas facilidades. Mas avançar por este caminho de forma tão regular, como tem acontecido, é um pouco como matar a galinha dos ovos de ouro na tentativa de os ter todos no imediato e de uma só vez. E aqui voltamos a assistir, como noutros temas como a falta de vontade de combater a corrupção ou o financiamento ilícito dos partidos, a uma cumplicidade perversa entre os dois maiores partidos.

 

Com uma facilidade fiscal a cada quatro anos, é natural que os contribuintes consolidem a ideia de que o cumprimento das obrigações fiscais não é, afinal, tão importante nem a sua violação tão grave.

 

Quando são os próprios ministros das Finanças que às segundas, quartas e sextas fazem discursos inflamados contra a fuga ao fisco e às terças e quintas assinam mais um processo especial de regularização de dívidas ao fisco, não se pode dar sinal mais errado aos cidadãos que devem cumprir as suas obrigações para com o Estado.

 

Acresce que cada processo destes encerra sempre uma injustiça relativa entre os contribuintes que se esforçam para ter as suas contas em dia e os outros, que vêem recompensada a sua prática ilegal.

 

Depois de claras melhorias na capacidade de combate à fraude e à fuga, a máquina fiscal passou a ser notícia essencialmente por más razões: são os abusos na cobrança de impostos que não são devidos ou as penhoras de bens valores escandalosamente desajustados dos das dívidas que as justificaram.

 

As facilidades que o Governo está a preparar não são compatíveis com estes tiques de um certo terrorismo fiscal.

 

Se a máquina tributária tem confiança em si, na sua capacidade de cobrança, na justiça com que o faz e na forma como se defende quando os contribuintes recorrem ao tribunal, para quê, afinal, mais um perdão fiscal de juros e coimas aplicado a estes casos?