A eterna relatividade das obrigações fiscais Paulo Ferreira
Cada perdão fiscal é uma machadada numa coisa básica
que o país demora a entender: as contas são mesmo
para pagar
Chamam-lhe operações especiais de regularização de
dívidas fiscais. Mas não são mais do que perdões de
multas, juros ou de outras sanções a quem fica a
dever dinheiro dos impostos ao Estado, num estímulo
para que as contas sejam saldadas.
O perdão fiscal que este Governo está a preparar
para as dívidas que estão a ser contestadas em
tribunal vai ser o quarto em 14 anos. Temos
assistido, certamente não por acaso, a um desses
perdões em cada ciclo de governação.
E todos têm, pelo menos, duas características que os
unem: são sempre apresentados como "a última
oportunidade" para os contribuintes faltosos
regularizarem as suas dívidas e são sempre
embrulhados numa justificação simpática.
Em 1994, foi Eduardo Catroga que, com o pretexto da
alteração da lei, que passou a criminalizar a
retenção de impostos não entregues ao Estado (como o
IVA ou o IRS), passar uma esponja sobre o assunto e
permitir que as dívidas ao fisco fossem pagas sem
penalizações adicionais.
Mudou o Governo e chegou António Guterres. Augusto
Mateus, o seu segundo ministro da Economia. deu nome
a mais um plano, o Plano Mateus. Tudo começou com a
vontade de resolver o problema das dívidas dos
clubes de futebol ao Estado. Mas, perante o
escândalo de tratamento diferenciado a esse sector
pouco recomendável, acabou num perdão para toda a
gente.
Em 2002, foi a vez de Manuela Ferreira Leite dar
novas facilidades para a regularização de dívidas
com o objectivo descarado de aumentar as receitas do
Estado na recta final do ano, numa altura de
descalabro orçamental.
E agora, depois de mais uma alternância no poder,
está um novo regime em preparação para convidar
contribuintes faltosos a regularizar o que ficaram a
dever. Desta vez há uma diferença. O esquema deverá
aplicar-se apenas a dívidas que estejam a ser
contestadas em tribunal, o que levanta logo a
primeira dúvida: vai contribuir para a redução ou
para o aumento da litigância fiscal na justiça?
Como se vê, não têm faltado justificações para cada
governo de turno avançar com o seu perdão fiscal. O
que falta a cada um deles são boas razões.
É verdade que com estas acções entraram centenas de
milhões de euros nos cofres do Estado que,
provavelmente, nunca entrariam sem essas
facilidades. Mas avançar por este caminho de forma
tão regular, como tem acontecido, é um pouco como
matar a galinha dos ovos de ouro na tentativa de os
ter todos no imediato e de uma só vez. E aqui
voltamos a assistir, como noutros temas como a falta
de vontade de combater a corrupção ou o
financiamento ilícito dos partidos, a uma
cumplicidade perversa entre os dois maiores
partidos.
Com uma facilidade fiscal a cada quatro anos, é
natural que os contribuintes consolidem a ideia de
que o cumprimento das obrigações fiscais não é,
afinal, tão importante nem a sua violação tão grave.
Quando são os próprios ministros das Finanças que às
segundas, quartas e sextas fazem discursos
inflamados contra a fuga ao fisco e às terças e
quintas assinam mais um processo especial de
regularização de dívidas ao fisco, não se pode dar
sinal mais errado aos cidadãos que devem cumprir as
suas obrigações para com o Estado.
Acresce que cada processo destes encerra sempre uma
injustiça relativa entre os contribuintes que se
esforçam para ter as suas contas em dia e os outros,
que vêem recompensada a sua prática ilegal.
Depois de claras melhorias na capacidade de combate
à fraude e à fuga, a máquina fiscal passou a ser
notícia essencialmente por más razões: são os abusos
na cobrança de impostos que não são devidos ou as
penhoras de bens valores escandalosamente
desajustados dos das dívidas que as justificaram.
As facilidades que o Governo está a preparar não são
compatíveis com estes tiques de um certo terrorismo
fiscal.
Se a máquina tributária tem confiança em si, na sua
capacidade de cobrança, na justiça com que o faz e
na forma como se defende quando os contribuintes
recorrem ao tribunal, para quê, afinal, mais um
perdão fiscal de juros e coimas aplicado a estes
casos?