O que sustenta o nosso Estado social, senão a crença
de que a realidade não é nada e uma maioria
parlamentar é tudo?
Aparentemente, Portugal tem pobres a mais e bons
alunos a menos. Nos últimos dias, o poder político
começou a mudar as coisas: a Assembleia da República
fez uma lei a banir a pobreza e alguém calibrou os
exames para deixar passar mais alunos.
Incompreensivelmente, houve quem tivesse achado tudo
isso "monstruoso".
A essas almas indignadas, é preciso perguntar: mas
como julgam elas que temos vivido nos últimos anos?
O que sustenta o nosso Estado social, senão a crença
de que a realidade não é nada e uma maioria
parlamentar é tudo? A evolução do sistema de ensino
o que revela, senão a ideia de que o direito a ter
um certificado dispensa a obrigação de aprender?
Nos últimos tempos, poucas vezes os portugueses
deixaram a realidade incomodá-los. Há uns dez anos
que as faculdades de Economia emitem um ruído
permanentemente angustiado acerca da queda de quase
todos os indicadores de saúde económica nacional. E
como passámos nós esta década devastadora? Num dos
países europeus com mais casas, mais carros, mais
telemóveis e mais centros comerciais. Para a
perfeição, só nos faltou um detalhe: atribuir ao
Governo ou à Assembleia da República o direito de
emendar as publicações do INE e do Banco de
Portugal, de modo a podermos olhar para estatísticas
à altura, não dos recursos que temos, mas dos
recursos que gastamos.
Deveria agora, segundo as regras da conversa em
Portugal, introduzir uma nota deprimente, inspirada
por Oliveira Martins ou algum dos seus epígonos,
acerca das nossas infelizes propensões e tradições
históricas. Vou dispensar a auto-abjecção. Em
Portugal, serve sobretudo para dizer que, uma vez
que tudo esteve sempre mal, não nos devemos
preocupar, porque tudo irá continuar mal... mas
continuar.
Conhecem certamente o fado: sempre vivemos acima das
nossas posses, sempre dependemos do Estado, sempre
fomos medíocres e por aí fora. É uma lengalenga
curiosa, porque faz da suposta crítica uma forma
subtil de conforto: se fomos sempre assim e chegámos
aqui, para quê mudar? Não podemos - nem precisamos.
Ora, o problema que os portugueses talvez enfrentem
um dia destes não é o de as coisas, como de costume,
estarem mal, mas o de as coisas, ao contrário do que
era costume, não poderem continuar como estão.
Aquilo que tem escapado a demasiada gente é que,
independentemente de analogias entre a actualidade e
o passado, a vida que levamos em Portugal não tem a
ver com costumes ancestrais, mas com opções
políticas recentes, sem as quais tudo teria acabado
há muito tempo. Há duas décadas, alguns julgaram que
a integração europeia serviria para importar
disciplina orçamental e as míticas "reformas
estruturais". Acontece que tanto os Governos como a
população viram a integração pelo outro lado: o dos
subsídios e do crédito barato. Foi deste modo
possível viabilizar, no momento em que já entrara em
colapso, uma cultura política assente na suposta
omnipotência do Estado para transformar expectativas
e ambições em direitos e generalizar a vida da
classe média sem o correspondente património e
esforço. E assim se chegou à violação do Pacto de
Estabilidade, e aos níveis actuais de endividamento
generalizado.
Em tudo isto, os portugueses comportaram-se como se
teria comportado qualquer população sujeita às
mesmas tentações. Gostamos de dizer que, sem a UE,
já teria havido um golpe de Estado ou uma visita do
FMI, como se a UE nos dispensasse indefinidamente de
qualquer esforço para corrigir instituições e
hábitos. E se não for bem assim?
De crises recentes, retirámos a convicção de que não
há tempestade que não dê em bonança: foi assim
depois das crises de 1973-75 e de 1983-84. Mas a
recuperação da crise de 1993-94 já foi menor do que
as anteriores, e a de 2003-04 pouco se sentiu. A
semana passada, no entanto, vimos o primeiro
ministro, ao mesmo tempo que gozava o velho
ilusionismo do PCP, a tentar ajudar a realidade,
declarando "vencida" a "crise interna". É este o
mesmo governo que, há três anos, estabeleceu como
objectivo principal aumentar o crescimento potencial
da economia para 3 por cento e que, nas previsões
anteriores à "crise internacional", não chegara a
mais do que 1,3 por cento?
Na segunda-feira, no Diário Económico, João Marques
de Almeida escrevia: "Temos que ser nós a
adaptar-nos ao mundo. O mundo não espera por
Portugal". Há, no entanto, uma alternativa: é a
Assembleia da República, em nome das nossas
hipotéticas tradições e declarada vontade
democrática, fazer uma lei a adaptar o mundo a
Portugal. Bastaria, antes, votar outra lei a abolir
de vez a realidade. Historiador