Público - 09 Jul 08

 

O primeiro país a abolir a realidade
Rui Ramos

 

O que sustenta o nosso Estado social, senão a crença de que a realidade não é nada e uma maioria parlamentar é tudo?

 

Aparentemente, Portugal tem pobres a mais e bons alunos a menos. Nos últimos dias, o poder político começou a mudar as coisas: a Assembleia da República fez uma lei a banir a pobreza e alguém calibrou os exames para deixar passar mais alunos. Incompreensivelmente, houve quem tivesse achado tudo isso "monstruoso".

 

A essas almas indignadas, é preciso perguntar: mas como julgam elas que temos vivido nos últimos anos? O que sustenta o nosso Estado social, senão a crença de que a realidade não é nada e uma maioria parlamentar é tudo? A evolução do sistema de ensino o que revela, senão a ideia de que o direito a ter um certificado dispensa a obrigação de aprender?

 

Nos últimos tempos, poucas vezes os portugueses deixaram a realidade incomodá-los. Há uns dez anos que as faculdades de Economia emitem um ruído permanentemente angustiado acerca da queda de quase todos os indicadores de saúde económica nacional. E como passámos nós esta década devastadora? Num dos países europeus com mais casas, mais carros, mais telemóveis e mais centros comerciais. Para a perfeição, só nos faltou um detalhe: atribuir ao Governo ou à Assembleia da República o direito de emendar as publicações do INE e do Banco de Portugal, de modo a podermos olhar para estatísticas à altura, não dos recursos que temos, mas dos recursos que gastamos.

 

Deveria agora, segundo as regras da conversa em Portugal, introduzir uma nota deprimente, inspirada por Oliveira Martins ou algum dos seus epígonos, acerca das nossas infelizes propensões e tradições históricas. Vou dispensar a auto-abjecção. Em Portugal, serve sobretudo para dizer que, uma vez que tudo esteve sempre mal, não nos devemos preocupar, porque tudo irá continuar mal... mas continuar.

 

Conhecem certamente o fado: sempre vivemos acima das nossas posses, sempre dependemos do Estado, sempre fomos medíocres e por aí fora. É uma lengalenga curiosa, porque faz da suposta crítica uma forma subtil de conforto: se fomos sempre assim e chegámos aqui, para quê mudar? Não podemos - nem precisamos. Ora, o problema que os portugueses talvez enfrentem um dia destes não é o de as coisas, como de costume, estarem mal, mas o de as coisas, ao contrário do que era costume, não poderem continuar como estão.

 

Aquilo que tem escapado a demasiada gente é que, independentemente de analogias entre a actualidade e o passado, a vida que levamos em Portugal não tem a ver com costumes ancestrais, mas com opções políticas recentes, sem as quais tudo teria acabado há muito tempo. Há duas décadas, alguns julgaram que a integração europeia serviria para importar disciplina orçamental e as míticas "reformas estruturais". Acontece que tanto os Governos como a população viram a integração pelo outro lado: o dos subsídios e do crédito barato. Foi deste modo possível viabilizar, no momento em que já entrara em colapso, uma cultura política assente na suposta omnipotência do Estado para transformar expectativas e ambições em direitos e generalizar a vida da classe média sem o correspondente património e esforço. E assim se chegou à violação do Pacto de Estabilidade, e aos níveis actuais de endividamento generalizado.

 

Em tudo isto, os portugueses comportaram-se como se teria comportado qualquer população sujeita às mesmas tentações. Gostamos de dizer que, sem a UE, já teria havido um golpe de Estado ou uma visita do FMI, como se a UE nos dispensasse indefinidamente de qualquer esforço para corrigir instituições e hábitos. E se não for bem assim?

 

De crises recentes, retirámos a convicção de que não há tempestade que não dê em bonança: foi assim depois das crises de 1973-75 e de 1983-84. Mas a recuperação da crise de 1993-94 já foi menor do que as anteriores, e a de 2003-04 pouco se sentiu. A semana passada, no entanto, vimos o primeiro ministro, ao mesmo tempo que gozava o velho ilusionismo do PCP, a tentar ajudar a realidade, declarando "vencida" a "crise interna". É este o mesmo governo que, há três anos, estabeleceu como objectivo principal aumentar o crescimento potencial da economia para 3 por cento e que, nas previsões anteriores à "crise internacional", não chegara a mais do que 1,3 por cento?

 

Na segunda-feira, no Diário Económico, João Marques de Almeida escrevia: "Temos que ser nós a adaptar-nos ao mundo. O mundo não espera por Portugal". Há, no entanto, uma alternativa: é a Assembleia da República, em nome das nossas hipotéticas tradições e declarada vontade democrática, fazer uma lei a adaptar o mundo a Portugal. Bastaria, antes, votar outra lei a abolir de vez a realidade. Historiador