Voltámos a 1975: vai ser proibido ser pobre José Manuel Fernandes
Transformar o direito a não ser pobre num direito
humano e judicializá-lo mostra que pouco se aprendeu
com a história, com o debate de ideias e nada se
deve à velha regra do bom sensoSe o ridículo
matasse, os cangalheiros teriam hoje muito que fazer
para as bandas de São Bento, pois encontrariam umas
centenas de corpos para recolher, todos quantos os
deputados que se preparam para, em mais uma absurda
originalidade portuguesa, tornarem o nosso país no
primeiro onde a existência de pobreza passará a ser
um crime imputável a quem for Governo.
As boas intenções são muito perigosas em política, e
mais perigosa ainda é a ideia de que tudo é
responsabilidade de quem é Governo. Mas, apesar de a
experiência nos ter mostrado que o Estado deve
limitar a sua intervenção à criação de condições
para que todos tenham uma oportunidade e um nível
mínimo de segurança, devendo abster-se de maiores
interferências no destino dos indivíduos, a verdade
é que ainda continua a ser popular a ideia de um
Estado - e um Governo - omnipotente e omnisciente.
A lei que a AR vai aprovar é um exemplo de como a
falta de coragem e frontalidade dos políticos não
lhes permite dizer não ao absurdo quando esse
absurdo é, aparentemente, bem-intencionado. Recebida
uma petição onde se sugeria que a pobreza devia
passar a ser encarada como uma violação dos direitos
humanos, os nossos deputados apressaram-se a dizer
que tratarão de permitir que esse novo "direito
humano" seja objecto de medidas visando a sua
garantia. Já que, como dizia um socialista, "no
campo teórico, todo o Direito violado é passível de
sanção", então, como acrescentou uma bloquista, "vai
ser possível exigir políticas públicas de combate à
pobreza, porque a sua ausência configurará uma
violação" da lei. Aflito mas com a visão bastante
nublada, um deputado do PSD apenas conseguiu
acrescentar que, então, será preciso "designar qual
o limiar nacional de pobreza", acrescentando a medo
que só haveria crime no caso de "uma regressão".
E se os nossos deputados tivessem um pouco de
cultura política, de memória histórica e
conhecimento do mundo, arrepiar-se-iam só com a
sugestão de "criar" este "direito humano". Por isso
vale a pena recordar-lhes alguns factos e enquadrar
algumas ideias.
Começando pelos factos. O primeiro é português e
recente: a altura em que, em Portugal, a pobreza
cresceu mais foi no período de reajustamento de
1983/85, durante o Governo PS/PSD presidido por
Mário Soares. Nessa altura, flutuaram muitas
bandeiras negras pelo país, mas se o Governo de
então não tivesse tido a coragem de tomar medidas
draconianas teríamos entrado numa espiral de dívidas
e sido incapazes de estar em condições de aderir à
União Europeia. Contudo, se esta lei estivesse em
vigor, Mário Soares e o então líder do PSD, Mota
Pinto, poderiam ter sido perseguidos na Justiça - em
vez disso, o primeiro acabaria por ser eleito
Presidente da República: mandaram os eleitores, não
os juízes.
O outro é um pouco mais antigo mas vale a pena
recordá-lo, pois passarão amanhã 50 anos em que,
formalmente, acabou o regime de racionamento no
Reino Unido. Havia durado toda a II Guerra e havia
sobrevivido quase mais dez anos. Se algum dos nossos
deputados tiver lido a obra de Tony Judt Pós-guerra,
saberá que esse regime foi especialmente duro para
os britânicos no imediato pós-guerra, quando o seu
Governo decidiu pedir-lhes mais sacrifícios para que
fosse possível, vejam lá, alimentar os antigos
inimigos, os alemães. Então se media a pobreza em
libras, mas avaliava-se a subnutrição em calorias
consumidas por dia. As senhas de racionamento
implicaram então não apenas pobreza: traduziram-se
em fome, muita fome. A ração diária dos britânicos
chegou mesmo a ser inferior à dos derrotados
alemães, mas os arquitectos dessa política e o
estóico povo do Reino Unido mereceram o aplauso da
História, não o opróbrio de serem levados perante um
"tribunal de direitos humanos".
Finalmente era interessante que os nossos deputados
tivessem consciência de que, mesmo querendo ser
pioneiros, já houve quem lhes levasse a palma no que
toca a julgar os alegados violadores dos direitos
humanos. Referimo-nos ao Canadá, onde funciona, há
quase 30 anos, um sistema de tribunais "de direitos
humanos" que são presididos por funcionários
públicos, praticam um contraditório elementar e que
têm vindo a condenar, de forma sistemática, os que,
bem ou mal, se afastam do "politicamente correcto".
Muitos canadianos acreditam hoje que esses tribunais
se estão a transformar, nas mãos da burocracia
pública, num temível instrumento dirigido, por
exemplo, contra a liberdade de opinião e expressão
(uma rápida consulta via Net permite consultar
algumas sentenças que confirmam este receio).
Mas os nossos deputados, especialmente os do arco
não comunista, tinham obrigação de conhecer a
diferença entre liberdades ou direitos negativos
(que visam proteger o cidadão dos abusos do poder) e
as liberdades ou direitos positivos (que implicam
uma intervenção do poder que pode, no limite,
colidir com direitos individuais dos cidadãos).
Talvez lhes fosse útil, antes de votarem, lerem
algumas páginas de Isaiah Berlin ou, se quiserem
poupar tempo, passarem os olhos pelo apêndice ao
capítulo IX de uma das últimas obras de Friederich
Hayek, Law, Legislation and Liberty. Aí encontrarão
uma interessante crítica à forma como se chegou à
Declaração Universal dos Direitos do Homem (que
completa esta ano seis décadas), em especial aos
seus artigos 22.º, 23.º e 24.º. Neste último, por
exemplo, prevê-se o "direito universal" a férias
pagas, algo que só faz sentido se todos os homens
fossem empregados, algo que é difícil de imaginar,
pois, para existirem empregados, é necessário
existirem também empregadores.
Tudo isto lhes permitiria chegar ao ponto essencial:
"Se queremos que a maioria viva cada vez melhor,
chegaremos mais depressa ao nosso objectivo não
transformando-o numa lei, nem dando a todos o
direito de perseguirem nos tribunais esse
desiderato, mas dando a todos os incentivos
necessários para que façam o seu melhor de forma a
beneficiarem os outros". Isto porque é errado falar
de "direitos quando o que está em causa são
aspirações que só podem ser alcançadas numa base
voluntária". As palavras são de Haiek e, mesmo tendo
sido escritas em 1982, mantêm toda a sua
actualidade.