Por muito que isso custe ao Governo, a actual
situação do país já não se compadece com meros
exercícios de propaganda Com um sentido de
oportunidade único, o dr. Pinho decidiu passear por
vários supermercados para nos mostrar os efeitos
fabulosos que a descida de um ponto no escalão mais
alto do IVA teve no bolso dos consumidores -
sobretudo no dos "mais necessitados". Rodeado de
produtos que não são afectados pela alteração do
imposto, como explicou, ontem, no PÚBLICO, Paulo
Ferreira, o ministro apresentou-se resplandecente ao
país, recheado de boas notícias e de óptimos
resultados: graças aos superiores méritos do
Governo, os portugueses, depois de apertarem o cinto
durante três anos, podem agora desforrar-se e poupar
meia dúzia de cêntimos na compra de um amaciador ou
mesmo de um de um detergente (embora, por razões
misteriosas, o preço do Super Pop Maçã se mantenha
igual, imune à boa vontade do primeiro-ministro).
Atento à crise social (que o discurso oficial,
diga-se de passagem, tem relutância em aceitar), o
dr. Pinho escolheu as grandes superfícies comerciais
para fazer passar a sua radiosa mensagem: o esforço
de consolidação orçamental não foi em vão, os
consumidores - "sobretudo os mais necessitados" -
podem dar-se por satisfeitos e as empresas que
diligentemente se aplicaram na concretização deste
súbito apoio social devem ser vistas "como exemplo"
a seguir por todas as outras que se apropriam das
vantagens que se escondem por trás da descida do IVA.
Aparentemente, o dr. Pinho "esqueceu-se" que esta
extraordinária medida não tem qualquer efeito na
maior parte dos bens de primeira necessidade,
nomeadamente no chamado "cabaz alimentar", no qual
se aplica um escalão mais baixo do imposto. Mas
isso, como é óbvio, não atrapalhou a retórica fácil
do ministro. Presumindo naturalmente que os
consumidores "mais necessitados" não perdem tempo a
comprar leite, arroz ou pão, o dr. Pinho passou ao
lado dos preços dos bens alimentares para se
dedicar, em exclusivo, à poupança conseguida naquilo
que, na sua opinião, devem ser os produtos
essenciais: amaciadores de roupa, cremes para o
corpo ou para a cara, perfumes, espumas para o
cabelo e outros itens igualmente determinantes.
O episódio não teria importância de maior se não
revelasse, por si só, a forma como o Governo encara
a crise social que se vive em Portugal. Respondendo
a um suave recomendação feita pelo dr. Mário, o eng.
Mário Lino já tinha dito que nem ele, nem qualquer
outro ministro, precisava de "avisos" desta natureza
que revelavam, antes de mais, uma ignorância
atrevida sobre a verdadeira situação do país. Agora,
aparece o dr. Pinho a explicar que a descida do IVA
não foi tanto uma decisão económica decorrente do
equilíbrio das contas públicas, mas sim uma medida
de carácter social que se reflecte miraculosamente
no bolso dos mais desfavorecidos. Ou seja, no curto
espaço de um mês, o Governo "descobriu" subitamente
a crise social (que tantas vezes negou ao longo de
todo o ano) e, na ausência de qualquer iniciativa de
fundo, resolveu recuperar uma medida financeira de
carácter duvidoso, transformando-a, de repente, num
incentivo social de efeitos inexistentes. A descida
do IVA, esse sinal positivo dado ao país nas
vésperas de este se aperceber dos efeitos dramáticos
da subida das taxas de juro, do aumento do preço do
petróleo e do encarecimento dos bens alimentares,
passou agora, graças aos bons ofícios do dr. Pinho,
a ser apresentada como uma forma de combater uma
crise que, na altura, de acordo com o discurso
oficial, pura e simplesmente não existia. Depois de
não ter conseguido antecipar os efeitos negativos
que a conjuntura internacional teria na economia
portuguesa, o Governo tem aparecido, nos últimos
tempos, a reboque de uma situação que não controla,
semeando medidas avulsas pelos vários sectores da
população em função das greves e das paralisações
que entopem recorrentemente o país.
Por outro lado, o súbito interesse do dr. Pinho
pelos consumidores "mais necessitados" não deixou de
revelar a fragilidade de um Governo incapaz de
compreender a verdadeira dimensão de uma crise que
afecta grande parte dos portugueses. Ao passar ao
lado dos bens alimentares, o ministro não percebeu
que, com a sua iniciativa, conseguiu não só ignorar
os tais consumidores "mais necessitados" como dar
provas de uma insensibilidade social assustadora,
esquecendo o problema fundamental que se põe às
famílias mais desfavorecidas, em qualquer
supermercado: o preço do "cabaz alimentar", que,
segundo os últimos estudos, aumentou, no primeiro
trimestre deste ano, cerca de seis por cento,
devendo ultrapassar os vinte por cento no final do
ano. Por muito que isso custe ao Governo, a actual
situação do país já não se compadece com meros
exercícios de propaganda. Jornalista