Público - 03 Jul 08

 

Exercícios de propaganda
Constança Cunha e Sá

 

Por muito que isso custe ao Governo, a actual situação do país já não se compadece com meros exercícios de propaganda Com um sentido de oportunidade único, o dr. Pinho decidiu passear por vários supermercados para nos mostrar os efeitos fabulosos que a descida de um ponto no escalão mais alto do IVA teve no bolso dos consumidores - sobretudo no dos "mais necessitados". Rodeado de produtos que não são afectados pela alteração do imposto, como explicou, ontem, no PÚBLICO, Paulo Ferreira, o ministro apresentou-se resplandecente ao país, recheado de boas notícias e de óptimos resultados: graças aos superiores méritos do Governo, os portugueses, depois de apertarem o cinto durante três anos, podem agora desforrar-se e poupar meia dúzia de cêntimos na compra de um amaciador ou mesmo de um de um detergente (embora, por razões misteriosas, o preço do Super Pop Maçã se mantenha igual, imune à boa vontade do primeiro-ministro).

 

Atento à crise social (que o discurso oficial, diga-se de passagem, tem relutância em aceitar), o dr. Pinho escolheu as grandes superfícies comerciais para fazer passar a sua radiosa mensagem: o esforço de consolidação orçamental não foi em vão, os consumidores - "sobretudo os mais necessitados" - podem dar-se por satisfeitos e as empresas que diligentemente se aplicaram na concretização deste súbito apoio social devem ser vistas "como exemplo" a seguir por todas as outras que se apropriam das vantagens que se escondem por trás da descida do IVA. Aparentemente, o dr. Pinho "esqueceu-se" que esta extraordinária medida não tem qualquer efeito na maior parte dos bens de primeira necessidade, nomeadamente no chamado "cabaz alimentar", no qual se aplica um escalão mais baixo do imposto. Mas isso, como é óbvio, não atrapalhou a retórica fácil do ministro. Presumindo naturalmente que os consumidores "mais necessitados" não perdem tempo a comprar leite, arroz ou pão, o dr. Pinho passou ao lado dos preços dos bens alimentares para se dedicar, em exclusivo, à poupança conseguida naquilo que, na sua opinião, devem ser os produtos essenciais: amaciadores de roupa, cremes para o corpo ou para a cara, perfumes, espumas para o cabelo e outros itens igualmente determinantes.

 

O episódio não teria importância de maior se não revelasse, por si só, a forma como o Governo encara a crise social que se vive em Portugal. Respondendo a um suave recomendação feita pelo dr. Mário, o eng. Mário Lino já tinha dito que nem ele, nem qualquer outro ministro, precisava de "avisos" desta natureza que revelavam, antes de mais, uma ignorância atrevida sobre a verdadeira situação do país. Agora, aparece o dr. Pinho a explicar que a descida do IVA não foi tanto uma decisão económica decorrente do equilíbrio das contas públicas, mas sim uma medida de carácter social que se reflecte miraculosamente no bolso dos mais desfavorecidos. Ou seja, no curto espaço de um mês, o Governo "descobriu" subitamente a crise social (que tantas vezes negou ao longo de todo o ano) e, na ausência de qualquer iniciativa de fundo, resolveu recuperar uma medida financeira de carácter duvidoso, transformando-a, de repente, num incentivo social de efeitos inexistentes. A descida do IVA, esse sinal positivo dado ao país nas vésperas de este se aperceber dos efeitos dramáticos da subida das taxas de juro, do aumento do preço do petróleo e do encarecimento dos bens alimentares, passou agora, graças aos bons ofícios do dr. Pinho, a ser apresentada como uma forma de combater uma crise que, na altura, de acordo com o discurso oficial, pura e simplesmente não existia. Depois de não ter conseguido antecipar os efeitos negativos que a conjuntura internacional teria na economia portuguesa, o Governo tem aparecido, nos últimos tempos, a reboque de uma situação que não controla, semeando medidas avulsas pelos vários sectores da população em função das greves e das paralisações que entopem recorrentemente o país.

 

Por outro lado, o súbito interesse do dr. Pinho pelos consumidores "mais necessitados" não deixou de revelar a fragilidade de um Governo incapaz de compreender a verdadeira dimensão de uma crise que afecta grande parte dos portugueses. Ao passar ao lado dos bens alimentares, o ministro não percebeu que, com a sua iniciativa, conseguiu não só ignorar os tais consumidores "mais necessitados" como dar provas de uma insensibilidade social assustadora, esquecendo o problema fundamental que se põe às famílias mais desfavorecidas, em qualquer supermercado: o preço do "cabaz alimentar", que, segundo os últimos estudos, aumentou, no primeiro trimestre deste ano, cerca de seis por cento, devendo ultrapassar os vinte por cento no final do ano. Por muito que isso custe ao Governo, a actual situação do país já não se compadece com meros exercícios de propaganda. Jornalista