1. Se lêssemos a totalidade dos programas dos
candidatos às autárquicas descobriríamos que muito
mais grave do que as promessas não cumpridas pode
ser aquilo que os candidatos se propõem fazer caso
fossem eleitos. Por exemplo, a figura do "Zé" fica
muito menos simpática quando se lêem as páginas que
no seu programa Sá Fernandes dedica às escolas do
ensino básico. O que aí encontramos é um intenso
dirigismo, proveniente de um partido que pretende
aumentar o controlo municipal sobre as famílias,
impedindo-as de escolherem a escola pública que lhes
for mais conveniente e que vê na escola pública o
espaço ideal para fazer proselitismo político -
vejam-se, por exemplo, as linhas dedicadas à
Educação para a Cidadania no seu programa. É claro
que no passado as coisas tinham designações mais
óbvias, como Mocidade Portuguesa ou Pioneiros, mas
nos tempos que correm as aulas de Educação para a
Cidadania podem vir a ser utilizadas como espaços de
doutrinação. E o "Zé" sabe disso.
2. Basta acompanhar a recente polémica sobre o
serviço cívico que tem atravessado as páginas do
PÚBLICO para perceber como o tempo não lectivo dos
estudantes sempre foi terreno fértil para
proselitismos vários. Contudo, a par dessa discussão
sobre "quem mandou quem fazer o quê", é importante
que demos mais alguma atenção ao que foram e como
funcionaram essas mobilizações do chamado sector
intelectual e estudantil após o 25 de Abril.
Os processos revolucionários detestam o ócio, os
tempos livres e temem as actividades cuja
organização do tempo e das hierarquias lhes surge
como desregulada. Os serviços cívicos e as campanhas
de alfabetização funcionam como meio de ocupação e
controlo daqueles que, pelo seu estilo de vida, são
dificilmente controláveis. (Assim se entende que
durante o congresso dos escritores, em 1975, uma das
propostas aí apresentadas até colocasse a hipótese
de se alargar o serviço cívico aos escritores.)
O PREC não dividiu os portugueses apenas em
revolucionários e contra-revolucionários. O povo que
supostamente seria libertado pela revolução também
foi dividido em consciente e alienado. Às vezes, o
retrato dos alienados do Norte era quase grotesco.
Não afiançou, em Cuba, Otelo Saraiva de Carvalho que
as Forças Armadas Portuguesas iriam participar no
desenvolvimento do Norte do país onde, segundo ele,
existiriam localidades cujos "habitantes têm um
vocabulário inferior a 500 palavras"? Foi nesse país
dos ignorantes e alienados que as campanhas
sanitárias e de alfabetização, que arrancaram ainda
no Verão de 1974 e que anteciparam o serviço cívico,
tal como as sessões de dinamização levadas a cabo
pelo MFA, como a Nortada e a Verdade, tiveram quase
exclusivamente lugar.
O serviço cívico e as campanhas de alfabetização não
dizem apenas respeito aos estudantes e a quem os
dirigia. Eles inserem-se numa visão revolucionária
da sociedade em que, como afirmou Sartre, em Lisboa,
em 1975, "as eleições são uma ratoeira para
idiotas". Mas não só. É também uma sociedade em que
em nome da igualdade material entre os homens se
estabelece entre eles a maior das desigualdades: a
intelectual. Por isso, em Lisboa, há 32 anos,
ninguém se indignou quando, após invectivar os
estudantes para que fossem para os campos fazer a
revolução cultural, Sartre perguntou: "O povo
português no seu conjunto, os camponeses do Norte,
por exemplo, são cidadãos livres e capazes de votar
com todo o senso que esse voto implica ou ainda não
são capazes?" Jornalista