Carta aberta ao senhor ministro da Saúde
António Gentil Martins
É injustificado e insultuoso pretender que os
médicos tenham de confirmar, por escrito, o seu
respeito pela ética. A pós o referendo nacional
sobre o "aborto", antecedido por frequentes e claras
afirmações de muitos dos mais representativos dos
votantes pelo "sim", de que o consideravam um mal
(embora por vezes, e segundo eles, necessário),
surgiu a Lei n.º 16/2007, seguida da Portaria n.º
741-A/2007. Para além do conteúdo-base (que
repudiamos), verifica-se que a lei, no seu artigo
6.º, assegura aos profissionais de saúde, e
nomeadamente aos médicos, a "objecção de
consciência".
A objecção de consciência, direito fundamental
constitucionalmente protegido, permite que os
médicos recusem a prática de actos da sua profissão
quando tal prática entre em conflito com a sua
consciência moral, religiosa ou humanitária ou
contradiga o disposto no seu código deontológico.
Obviamente esses profissionais não poderão ser
prejudicados, de nenhum modo e sob nenhum pretexto,
por exercerem tal direito.
Se, por outro lado, o regime aprovado proíbe os
médicos de participar na consulta prévia, e no
acompanhamento durante o período de reflexão, por
outro pretende, de forma contraditória,
injustificada e ilegal, obrigá-los a indicar quem
pratique o aborto. Se, com uma mão, a lei assina um
atestado de incompetência e falta de isenção aos
médicos, impedindo-os de acompanhar a grávida na
fase pré-aborto, com a outra empurra, sem corda,
para a falésia, este direito de agir segundo os seus
princípios morais, religiosos ou humanitários, ao
obrigar esses mesmos profissionais, "incompetentes e
parciais", a que encaminhem a grávida até ao...
aborto.
Afinal, deve ou não o objector de consciência
pronunciar-se? A partir de que fase tem competência,
dignidade moral e isenção para intervir? Porque só é
obrigado a intervir para que a prática do aborto, de
que discorda, se concretize? Como será possível
conciliar as duas imposições?
A portaria indica que a objecção de consciência deve
ser manifestada em documento (burocrático e mesmo
insultuoso, porque parece desconhecer a ética
médica), assinado pelo objector, o qual deve ser
apresentado ao seu director clínico. Mas,
certamente, apenas deverá competir a quem aprovou a
lei, o Estado, divulgar onde o aborto poderá,
infelizmente, vir a materializar-se.
O código deontológico da Ordem, aplicável a todos os
médicos, diz que, no exercício da sua profissão,
este é técnica e deontologicamente independente, não
podendo ser subordinado à orientação de estranhos.
Mais: o médico deve, em qualquer lugar ou
circunstância, prestar tratamento de urgência a
pessoas que se encontrem em perigo imediato. Assim
sendo, e mesmo quando objector de consciência, nunca
deixará o médico de tratar uma doente que, por causa
de um aborto, sofra consequências. É, por isso
mesmo, injustificado e insultuoso pretender que os
médicos tenham de confirmar, por escrito, o seu
respeito pela ética. O mesmo se poderá dizer quanto
a assegurar o respeito pelo segredo profissional,
pois o código deontológico afirma que esse segredo
se impõe a todos e constitui matéria de interesse
moral e social.
No artigo 30.º do código, referente à objecção de
consciência, diz-se claramente que o médico tem o
direito de recusar a prática de actos da sua
profissão quando tal entre em conflito com a sua
consciência moral, religiosa ou humanitária ou
contradiga o disposto no código deontológico.
Pontos essenciais, incluídos no juramento
hipocrático, estão consagrados no artigo 47.º, onde
se estabelece que o médico deve guardar respeito
pela vida humana desde o seu início; que constitui
falta deontológica grave a prática do aborto e da
eutanásia; que esclarece, no entanto, que não é
considerado aborto uma terapêutica imposta pela
situação clínica do doente como único meio capaz de
salvaguardar a sua vida. É o caso-limite, do
confronto entre duas vidas, das quais só uma poderá
ser salva.
Sabendo-se, segundo a leges artis, que a ecografia é
o meio mais fiável para datar uma gravidez, era bom
que a lei dissesse se, neste momento, se conhece
outro meio alternativo igualmente fiável para que
seja possível dispensar a ecografia, que na lei
deixou de ser obrigatória.
Assim sendo, esperamos que o Governo proceda à
alteração da portaria referida, por considerar
necessária e suficiente uma simples declaração, sob
compromisso de honra profissional, dos médicos
objectores de consciência.
Ex-bastonário da Ordem dos Médicos e ex-presidente
da Associação Médica Mundial e da sua comissão de
ética