Uma das
poucas ideias comuns à generalidade das análises
eruditas sobre a nossa situação é que é preciso
mudar a mentalidade dos portugueses. Seja o tema a
produtividade ou a pontualidade, a democracia ou o
trânsito, a História ou os telemóveis, mais cedo ou
mais tarde vem o refrão da praxe: as mentalidades
têm de mudar. A elite nacional, de esquerda ou de
direita, no Liberalismo e no Estado Novo, em
relatórios como no conhaque, está de acordo sobre a
urgência de tal alteração.
À primeira vista, essa exigência parece um
diagnóstico sábio e fundamentado. Tem os contornos
de um conselho prudente de alguém que domina bem o
desenrolar dos mecanismos do progresso. Mas, de
facto, o que esta opinião revela é um supino
desprezo pelo nosso povo. Dizer que é urgente
encontrar novas atitudes significa a certeza de que
com esta gente a coisa não vai lá. Só conseguiremos
sucesso se dos portugueses fizermos ingleses ou
suíços. E até sabemos a via para isso: a educação.
Porque educar o povo é para o mudar em suíços.
Esta é uma velha atitude da elite nacional, que
sempre se achou boa de mais para o país que a viu
nascer. O repúdio pela massa ignara circundante é um
mote secular nos escritos de literatos, empresários
ou damas de sociedade. Hoje, em tempos mais
tolerantes e politicamente correctos, não se pode
expressar abertamente sentimentos aristocratas. Mas
a exigência de mudança urgente de mentalidades
manifesta a mesma atitude arrogante.
Uma análise objectiva da realidade mostra como este
diagnóstico é falso. Portugal foi grande no passado
precisamente com o mesmo povo que hoje tem, e os
períodos recentes de crescimento não exigiram outra
mentalidade. Aliás, se alguma coisa é
substancialmente inferior em Portugal face aos
vizinhos, não é o povo, mas a elite. A população,
com a sua sensatez, franqueza e fidelidade, sempre
fez maravilhas, no século das descobertas como no
das revoluções, na era iluminista como na
tecnológica. Quem nunca esteve à altura foram os
nossos reis e ministros, artistas e eruditos,
diplomatas e magistrados. Que depois se desculpavam
com o povo inculto.
Talvez o caso mais flagrante se tenha dado em 1910.
A crise era profunda e a monarquia impopular. Mas a
clique que tomou o poder, composta por teóricos
imprudentes que se consideravam inspirados por terem
lido uns livros estrangeiros, precipitou-a no caos.
Este punhado de jacobinos radicais não tinha nenhuma
dúvida sobre a superioridade da sua verdade e sobre
a necessidade de mudar por completo a mentalidade do
povo. O resultado foi a maior catástrofe nacional da
era moderna. A crise, se era terrível, conseguiu
ficar tão pior que o país desconfiou da democracia
durante 48 anos. E a culpa, claro, era da
mentalidade.
O paternalismo do Estado Novo também queria mudar as
mentalidades, mas compensava isso com os seus
instintos ruralistas, que os nossos intelectuais
sempre desprezaram como boçais e paroquianos. A
actual democracia, felizmente, tem-se mostrado mais
pragmática e resistente aos modelos abstrusos dos
ideólogos. No entanto, o supremo desejo da
engenharia social nunca abandonou os nossos salões.
Ele manifesta-se no recorrente apelo a mudar as
mentalidades.
Mas não precisa Portugal de uma mudança de
mentalidades? Claro que sim. Aliás, não existe
nenhum país que não tenha essa necessidade. Só que
mudar as mentalidades é como modificar o clima ou a
orografia: algo que acontece, mas lentamente e nunca
de forma controlada. Portugal, aliás, tem tido
ultimamente múltiplas mudanças de mentalidades. Boa
parte delas para pior. O espírito consumista e
novo-rico, parasita e subsidiodependente foi trazido
pelo progresso e a adesão à Europa. Tal como são
recentes o deboche soft e
pedante dos
Morangos com Açúcar ou a militância
sonhadora e moralista do Bloco de Esquerda.
Mas também tem havido mudanças para melhor. Basta
comparar as atitudes nos Mundiais de 1966 e 2006.
Desta vez os portugueses arriscaram-se a apostar na
selecção desde o início, enchendo o país de
bandeiras. Há 40 anos só o sucesso foi vencendo a
desconfiança prudente e motivou a adesão. Depois,
perante a derrota, os nossos pais optaram pela
"vitória moral", fingindo que devíamos ter ganho.
Hoje, perdeu-se a reserva saloia e manteve-se a
alegria porque, afinal, o quarto lugar até é bem
honroso. Isto prova uma profunda mudança, que talvez
aponte para uma nova mentalidade, confiante e
desenvolvida, até na crise.