Diário de Notícias - 17 Jul 06

A evolução das mentalidades

João César das Neves

Uma das poucas ideias comuns à generalidade das análises eruditas sobre a nossa situação é que é preciso mudar a mentalidade dos portugueses. Seja o tema a produtividade ou a pontualidade, a democracia ou o trânsito, a História ou os telemóveis, mais cedo ou mais tarde vem o refrão da praxe: as mentalidades têm de mudar. A elite nacional, de esquerda ou de direita, no Liberalismo e no Estado Novo, em relatórios como no conhaque, está de acordo sobre a urgência de tal alteração.

À primeira vista, essa exigência parece um diagnóstico sábio e fundamentado. Tem os contornos de um conselho prudente de alguém que domina bem o desenrolar dos mecanismos do progresso. Mas, de facto, o que esta opinião revela é um supino desprezo pelo nosso povo. Dizer que é urgente encontrar novas atitudes significa a certeza de que com esta gente a coisa não vai lá. Só conseguiremos sucesso se dos portugueses fizermos ingleses ou suíços. E até sabemos a via para isso: a educação. Porque educar o povo é para o mudar em suíços.

Esta é uma velha atitude da elite nacional, que sempre se achou boa de mais para o país que a viu nascer. O repúdio pela massa ignara circundante é um mote secular nos escritos de literatos, empresários ou damas de sociedade. Hoje, em tempos mais tolerantes e politicamente correctos, não se pode expressar abertamente sentimentos aristocratas. Mas a exigência de mudança urgente de mentalidades manifesta a mesma atitude arrogante.

Uma análise objectiva da realidade mostra como este diagnóstico é falso. Portugal foi grande no passado precisamente com o mesmo povo que hoje tem, e os períodos recentes de crescimento não exigiram outra mentalidade. Aliás, se alguma coisa é substancialmente inferior em Portugal face aos vizinhos, não é o povo, mas a elite. A população, com a sua sensatez, franqueza e fidelidade, sempre fez maravilhas, no século das descobertas como no das revoluções, na era iluminista como na tecnológica. Quem nunca esteve à altura foram os nossos reis e ministros, artistas e eruditos, diplomatas e magistrados. Que depois se desculpavam com o povo inculto.

Talvez o caso mais flagrante se tenha dado em 1910. A crise era profunda e a monarquia impopular. Mas a clique que tomou o poder, composta por teóricos imprudentes que se consideravam inspirados por terem lido uns livros estrangeiros, precipitou-a no caos. Este punhado de jacobinos radicais não tinha nenhuma dúvida sobre a superioridade da sua verdade e sobre a necessidade de mudar por completo a mentalidade do povo. O resultado foi a maior catástrofe nacional da era moderna. A crise, se era terrível, conseguiu ficar tão pior que o país desconfiou da democracia durante 48 anos. E a culpa, claro, era da mentalidade.

O paternalismo do Estado Novo também queria mudar as mentalidades, mas compensava isso com os seus instintos ruralistas, que os nossos intelectuais sempre desprezaram como boçais e paroquianos. A actual democracia, felizmente, tem-se mostrado mais pragmática e resistente aos modelos abstrusos dos ideólogos. No entanto, o supremo desejo da engenharia social nunca abandonou os nossos salões. Ele manifesta-se no recorrente apelo a mudar as mentalidades.

Mas não precisa Portugal de uma mudança de mentalidades? Claro que sim. Aliás, não existe nenhum país que não tenha essa necessidade. Só que mudar as mentalidades é como modificar o clima ou a orografia: algo que acontece, mas lentamente e nunca de forma controlada. Portugal, aliás, tem tido ultimamente múltiplas mudanças de mentalidades. Boa parte delas para pior. O espírito consumista e novo-rico, parasita e subsidiodependente foi trazido pelo progresso e a adesão à Europa. Tal como são recentes o deboche soft e pedante dos Morangos com Açúcar ou a militância sonhadora e moralista do Bloco de Esquerda.

Mas também tem havido mudanças para melhor. Basta comparar as atitudes nos Mundiais de 1966 e 2006. Desta vez os portugueses arriscaram-se a apostar na selecção desde o início, enchendo o país de bandeiras. Há 40 anos só o sucesso foi vencendo a desconfiança prudente e motivou a adesão. Depois, perante a derrota, os nossos pais optaram pela "vitória moral", fingindo que devíamos ter ganho. Hoje, perdeu-se a reserva saloia e manteve-se a alegria porque, afinal, o quarto lugar até é bem honroso. Isto prova uma profunda mudança, que talvez aponte para uma nova mentalidade, confiante e desenvolvida, até na crise.