1.Mais uma vez a realização de exames nacionais vem
lembrar que continua por resolver o grave problema
da qualidade do ensino escolar. Mas não foi isso o
que constituiu objecto da gritaria levantada nestes
dias. Mais uma vez, também, em vez de se
questionarem as causas dos maus resultados, o motivo
das emoções foi a própria avaliação. Deste modo, e
pela clássica manobra da diversão, evita-se
defrontar a verdadeira questão, que é a falência do
sistema público de ensino, e cria-se um outro
problema: o dos exames. Recorde-se o que tem sido a
grande resistência do "establishment do eduquês"
contra os exames nacionais, e até contra a
publicação nacional dos resultados e correspondente
graduação. Pretende-se que o sistema é bom, mesmo
contra maus resultados; e que o que está sempre mal
é a sua avaliação.
2. Creio que temos um problema nacional com a
instituição fundamental da avaliação. Em termos
gerais, as nossas práticas de avaliação são
mal-amadas e funcionam em termos injustos, porque
não distinguem seriamente o mérito. Desde as
carreiras nas empresas privadas, em grande parte
reguladas por convenções colectivas burocratizantes
quanto podem, até às carreiras na função pública,
que têm na sua base a progressão pela antiguidade e
pela classificação de muito bom atribuída a toda a
gente (agora vai ser proibido), o reconhecimento do
mérito é anulado pela estabilidade formal igual para
todos e pela progressão de via burocrática
(sobretudo nos empregos, mas não só). Como se uma
sociedade sem retribuição do mérito, isto é, sem
prémios nem castigos, pudesse funcionar com justiça
e progresso.
3. Está enraizada na cultura institucional do nosso
regime (desde o texto constitucional e em grande
medida por decorrência dele) uma mentalidade de
igualitarismo não competitivo, advogado sobretudo
pelas esquerdas ideológicas em nome da defesa dos
pobres e excluídos e sob a ideia da justiça social.
Mas erradamente. A defesa dos pobres e excluídos tem
de facto de fazer-se em nome da justiça, primeiro, e
em nome da solidariedade, de modo complementar. Mas
a justiça (e em matéria de justiça é preciso
distinguir a justiça retributiva e a justiça social)
não pede que se elimine a competição e a avaliação.
Pelo contrário: é precisamente quando não há
competição nem avaliação comparativa, ou seja,
quando tudo se igualitariza e se "garantiza", que
não poderá haver justiça - apenas poderá criar-se
uma falsificação da justiça, que é o igualitarismo
burocrático. E custe o que custar, só há um caminho
para a justiça do mérito, que é competir, comparar e
avaliar. É sem dúvida tarefa da solidariedade apoiar
e socorrer os que necessitarem; mas o que é devido
por solidariedade não absorve toda a justiça. Por
outras palavras: a justiça social não substitui nem
anula a justiça retributiva, mas apenas a
complementa. Mais ainda: a solidariedade é dever
geral, e não apenas dos que mais têm ou podem;
também na pessoa dos pobres e fracos a solidariedade
pede o cumprimento do dever universal de esforço e
do respeito pela justiça ao outro.
4. Se entre nós se reconhece como real a tendência
do nosso regime para a fuga à competição e à
avaliação do mérito, bem como a dominância de
mecanismos garantistas da estabilidade burocrática e
formal em estatutos vitalícios de direitos
adquiridos, então conviria contrariá-la. Pacheco
Pereira escreveu, há dias, sobre a necessidade de
"uma oposição liberal moderada" (ou de uma "oposição
liberal reformista"); nos claros e gerais termos em
que se exprimiu, tem toda a razão. É sem dúvida
necessária uma fundamental correcção racional e
doutrinária do nosso sistema político e
institucional: e essa correcção deve ir na direcção
da ênfase nas liberdades, direitos e deveres
pessoais fundamentais - com especial revisão dos
institutos político-ideológicos de satisfação
burocrática dos direitos sociais, que têm o duplo
efeito de gerar totalitarismo no Estado e
burocratismo na sociedade civil.
5. O liberalismo foi a maior revolução da história
política mundial. Veio colocar o indivíduo (prefiro
dizer: a pessoa) na posição de liberdade e de
igualdade originárias, perante o poder político, que
foi milenarmente o grande opressor. Quem pode ser
contra isso? Sucedeu que, depois, o funcionamento
dos regimes moldados em nome desta magnífica
libertação mostrou que, no plano económico
sobretudo, os que já eram social e economicamente
desfavorecidos e os que entravam em perda ou
desfavorecimento podiam cair em posições de extrema
carência e indignidade. Porquê? Porque, além da
liberdade e da igualdade de direitos, não foi
implementada a fraternidade (ao menos no seu mínimo
político, que é a solidariedade), para assim se
completar o lema da revolução. Com isso foi
frustrada a dimensão comunitária da pessoa, ficando
apenas em jogo um individualismo impiedoso e
funesto. Crítica esta muito acertada, que
historicamente foi feita pela doutrina social da
Igreja sem com isso subscrever a crítica socialista.
6. Hoje, as modernas democracias de "estado social"
pretendem realizar a harmonia da liberdade, da
igualdade e da solidariedade. Mas, sobretudo as que
nasceram sob uma ideia socialista, como a nossa,
sacrificaram as liberdades individuais (com a
respectiva responsabilidade) ao igualitarismo
colectivista, que, além de injusto, gerou o
burocratismo e a ineficiência. Não nos esqueçamos de
que em 1976 consagrámos o socialismo na nossa
Constituição. Sem qualquer sentimento masoquista,
recordo (a benefício dos muitos que não têm memória
disso) o célebre artigo 80º: "A organização
económico-social da República Portuguesa assenta no
desenvolvimento das relações de produção
socialistas, mediante a apropriação colectiva dos
principais meios de produção e solos, bem como dos
recursos naturais, e o exercício do poder
democrático das classes trabalhadoras". Nem o "poder
democrático" escapava à ditadura das classes
trabalhadoras, excluindo os restantes cidadãos. Este
artigo está hoje revisto; mas, apesar das revisões
parciais, restam ainda vários normativos na
Constituição que mantêm as raízes de 76 e alimentam
o seu espírito. Assim, uma revisão da Constituição
impõe-se.
7. Tem por isso razão Belmiro de Azevedo, e tantos
outros que periodicamente levantam o mesmo problema.
Não é por acaso que, ainda hoje, o Partido Comunista
continua a ser o defensor oficioso do texto
constitucional e o opositor a todas as revisões. É
que a Constituição impede reformas necessárias
naquela direcção de um "liberalismo social" e
(acrescento eu) de índole personalista.