Público - 3 Jul 06

Aborto: olhar o problema de frente

António Pinheiro Torres

Na semana em que se celebra o nono aniversário do referendo sobre o aborto livre e praticamente dez anos de falhanços na tentativa de o legalizar, o que mais nos impressiona a nós, empenhados nas campanhas do Não, é como ainda hoje, na sociedade portuguesa e entre os políticos, se foge de olhar para o assunto de frente.

Sempre dissemos que o aborto livre era uma resposta errada a um problema real e concreto: a existência de uma vida humana digna de protecção mas chegada numa gravidez indesejada ou complicada. E que esse problema tinha uma solução: estender a nossa mão e não apontar o dedo. Pusemo-nos a caminho e fizemos experiência de como isso era verdade. Contam-se às dezenas as associações que fundámos (acolhimento a grávidas e crianças, formação em educação sexual e planeamento familiar, linhas telefónicas de apoio, etc.) e aos milhares as pessoas concretas que ajudámos. Às centenas as mulheres e crianças que acolhemos. De todas as que desaconselhámos a abortar e no entanto o fizeram, algumas procuraram-nos depois, arrependidas. Das que ajudámos a ter um filho, ainda nenhuma no-lo devolveu ou desistiu de o criar. Como sempre todo o trabalho que desenvolvemos nunca mereceu nenhuma atenção dos media. As boas notícias não interessam.

Entretanto passaram por nós governos e legislaturas de cores diversas. O assunto nunca mereceu aos políticos, mais do que fogachos: declarações eleitorais e algum empenho aquando de um debate parlamentar. Medidas de fundo, apoios concretos e interesse em conhecer a realidade não fizeram a agenda de nenhum deputado ou governante com algumas honrosas excepções. Não há neste momento um partido ou um político sequer que esteja disponível para dizer "e se tentássemos que as pessoas não se encontrem em situações em que o aborto se lhes apareça como uma hipótese?" ou "e se assegurássemos a todas as mulheres portuguesas que é um compromisso do Estado que todos os obstáculos à gravidez serão removidos?" ou ainda "e se tentássemos perceber mesmo qual a dimensão do problema do aborto e que poderia dissuadir as mulheres de abortar e terceiros de para isso as empurrarem?".

O que aconteceu com esta última pergunta, na Assembleia da República, nesta e na anterior legislatura, é sintomático da irresponsabilidade, inconsequência e demagogia, com que a grande maioria dos políticos trata a questão do aborto. Recuemos a 2002. Em Abril a deputada Helena Roseta propõe um estudo sobre a realidade do aborto clandestino e o cumprimento das leis aprovadas em 1984. Após diversas negociações com a maioria de então, é aprovada uma Resolução da Assembleia no sentido de que se proceda a um amplíssimo estudo não apenas sobre os números do aborto, mas também sobre as suas motivações e as formas adequadas de o evitar. Estávamos em Setembro. Restava agora concretizar a questão. Mas durante um ano (!) nada se passa.

Setembro de 2003. O assunto é retomado na Comissão Parlamentar de Saúde. À boa maneira da casa o assunto arrasta-se durante um ano. Mas em Outubro de 2004, a decisão final é tomada, o assunto entregue ao Conselho de Administração da Assembleia. Inexplicavelmente e na sequência da dissolução do parlamento em Dezembro, o assunto morre ali. Nova Legislatura. Junho de 2004: o assunto é retomado em Comissão de Saúde e apenas com a abstenção do PCP, informado o Presidente da Assembleia que o estudo deve mesmo ser levado por diante. Desde então nem mais um passo...

No entanto, da necessidade de um estudo independente, com excepção dos comunistas, ninguém duvida. Pessoas e grupos favoráveis ao Sim ou Não num possível novo referendo, todos a subscrevem. A razão é simples. Se vier a existir um novo debate referendário ninguém seriamente empenhado neste problema, independentemente da sua posição, pretende um festival de slogans, a partidarização do debate ou um mero confronto de paixões. Vamos primeiro certificar-nos da realidade e depois esgrimir ideias? Não será o que se faria num país decente? Por que espera a Assembleia da República? Movimento Juntos pela Vida