Público -
5 Jul 05
A
privatização do aborto
Alexandra Teté
Tal como tinha ameaçado, o ministro da Saúde anunciou que vai contratar
clínicas privadas para garantir às mulheres portuguesas um aborto legal,
quando este não é "resolvido" nos hospitais públicos. Assim, seria
prosseguido o "interesse público", torneando o suposto incumprimento da
lei naquelas instituições e a invocação de objecção de consciência por
parte dos médicos.
Já foram apontadas, inclusivamente pela Ordem dos Médicos, as
inconsistências desta ideia do ministro, que aliás não é nova. Não há
dúvida que se realizam em Portugal menos abortos legais do que Correia
de Campos e vários deputados gostariam. Mas não são claras as razões
pelas quais a privatização do aborto uniformizaria critérios e reduziria
o nível de objecção de consciência, a não ser que se presuma e deseje
que o "interesse próprio" dos médicos venha a prevalecer sobre a sua
rectidão, para contornar quer a lei, quer a consciência, o que não é
admissível presumir ou incentivar.
Neste artigo gostaria de salientar que essa intenção do senhor ministro
é precipitada e perigosa, atendendo à experiência espanhola. É hoje um
dado adquirido que em Espanha a lei é violada, sistematicamente, pelas
clínicas privadas (que realizam 90 por cento dos abortos legais): aí, 97
por cento dos abortos provocados são justificados por motivos ligados à
saúde materna e, numa proporção esmagadora, são invocados motivos
psíquicos sem validação psiquiátrica. Como ainda recentemente foi
sublinhado num seminário realizado na Assembleia da República, o que há
de facto em Espanha, no sector privado, é o negócio florescente e
fraudulento do aborto "a pedido", à margem da lei e com a complacência
das autoridades.
Recordo que, no final de 2004, um parecer do Colégio (português) de
Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos considerou
perfeitamente correcta uma interpretação da lei (como ocorre em
Portugal) que não deslize para abusos, ao contrário do que acontece em
Espanha, onde a interpretação legal comum corresponderia a uma prática
negligente e abusiva da lei.
Aquele parecer sustentava ainda que o aborto voluntário com base em
motivos psíquicos, de acordo com a actual lei, raramente se justifica,
uma vez que não se estabeleceu nunca nenhuma relação causal directa e
inequívoca entre o estado de gravidez e qualquer grave e duradoura lesão
para a saúde psíquica que permita fundamentar tal medida em critérios
médicos absolutos. É sintomático que este parecer tenha sido quase
ignorado na comunicação social e na comunidade política. Depois de tanto
clamor e indignação sobre os presumidos defeitos da interpretação da lei
feita em Portugal e sobre os méritos da sua aplicação em Espanha, não
deixa de ser curioso este silêncio.
Por outro lado, é muito provável que a privatização do aborto vulnere o
direito da mulher a receber informação veraz e impeça o consentimento
informado. Por exemplo, de acordo com notícias saídas em meios de
comunicação social nos últimos tempos (Época e Voz de Galicia), a quase
totalidade das mães que abortam em Espanha não são advertidas das
consequências psicopatológicas e psiquiátricas que derivam do aborto,
consequências que hoje são bem conhecidas da comunidade científica,
constituindo a chamada "síndrome pós-aborto". Por último, há também
notícias de "ligações perigosas" ao longo da "cadeia de valor" do
negócio do aborto - entre as clínicas, a Federação de Planeamento
Familiar Espanhola e laboratórios farmacêuticos - que tendem explorar a
assimetria de informação de que beneficiam, à custa da saúde das
mulheres e da bolsa do Estado.
Em suma, a privatização do aborto gera incentivos perversos e suscita
sérios problemas de regulação e controlo. O ministro da Saúde é um
especialista em políticas públicas no sector e não pode ser a única
pessoa a ignorá-los, sobretudo quando a evidência empírica disponível
parece confirmar essa perversidade. Assim, a questão não será a
incapacidade do Estado para fazer cumprir a lei nos hospitais, mas sim a
esperança inconfessada do Governo de que o aborto seja discretamente
"liberalizado" no sector privado. Mesmo que o resultado do referendo -
embora o PS pareça apostado em fazer de Jorge Sampaio, à força, o
"Presidente do aborto" - seja não. Associação Mulheres em Acção