Pedro
Vaz Patto - 14 Jul 04
A
REVISÃO CONSTITUCIONAL E A “ORIENTAÇÃO SEXUAL”
DISSIPAR EQUÍVOCOS
A
última revisão constitucional veio incluir expressamente, no nº2 do
artigo 13º, a “orientação sexual” nas lista dos atributos (a par do
sexo, raça, religião, instrução, convicções políticas, condição
social, etc.) que não podem motivar discriminações contrárias ao
princípio da igualdade entre os cidadãos. É claramente contestável a
oportunidade desta inclusão. Como essa lista nunca se considerou
exaustiva, mas apenas exemplificativa, a omissão dessa referência
nunca seria obstáculo à invocação do princípio da igualdade contra
discriminações infundadas e injustas motivadas pela “orientação
sexual”. E o facto de tal referência ser uma reivindicação antiga
dos defensores dos chamados direitos dos homossexuais pode criar,
inútil e perigosamente, equívocos, como o de pensar que deste modo a
Constituição passa a dar cobertura a todas as reivindicações desses
grupos, designadamente as que dizem respeito ao casamento e à
adopção. Não surpreenderá ninguém que a nova versão do texto
constitucional venha a ser invocada em defesa dessas reivindicações
(que parece estarem prestes a ser satisfeitas em Espanha).
Outra dúvida que pode, inútil e perigosamente, suscitar-se tem a ver
com o conteúdo do próprio conceito de “orientação sexual”. Na mente
do legislador histórico (dos deputados) estariam provavelmente
apenas a orientação homossexual ou bissexual, confrontadas com a
orientação heterossexual. Mas, objectivamente, também a pedofilia
pode ser considerada uma orientação sexual. Contudo, não poderá,
obviamente, invocar-se o preceito constitucional na sua nova
redacção para contestar a criminalização do abuso sexual de
crianças, ou mesmo que a necessidade de prevenir estes crimes possa
justificar que a uma pessoa com tendências pedófilas sejam vedadas
actividades que impliquem o contacto habitual com crianças.
De qualquer modo, há que dissipar, desde já, todos os equívocos,
através da interpretação correcta do preceito em questão. Há que
reconhecer, de resto, que esta mesma referência consta da Carta
Europeia dos Direitos Fundamentais e constará, portanto, do futuro
Tratado Constitucional da União Europeia.
É
orientação unânime da doutrina e da jurisprudência a de que o
princípio da igualdade não veda (e pode até impor em algumas
circunstâncias) tratamentos diferenciados: proíbe que se trate de
forma desigual o que é objectivamente igual, mas não que se trate de
forma desigual o que é objectivamente desigual. Se o tratamento
diferenciado se funda em motivos objectivos, racionais e justos, e
não subjectivos, arbitrários ou discriminatórios, não contraria o
princípio da igualdade. É óbvio que não se discrimina
inconstitucionalmente em função da “instrução” quando se exige a
licenciatura em medicina para exercer a profissão de médico. Uma
condição social e económica de desfavor justificam um tratamento
fiscal mais benéfico (que pode até ser obrigatório de acordo com os
parâmetros constitucionais). Um partido político ou uma escola
confessional podem seleccionar os seus funcionários ou professores
de acordo com a fidelidade destes ao seu ideário, sem estarem, por
isso, a discriminar inconstitucionalmente em razão das “convicções
políticas” ou da “religião”.
Será discriminatório e contrário ao princípio da igual dignidade de
todos os cidadãos negar a uma pessoa com tendências homossexuais o
acesso a um emprego ou a um benefício social quando tal não tem
fundamento objectivo ou racional. Mas não se poderá dizer que não
tem fundamento objectivo ou racional a não equiparação das uniões
homossexuais aos casais heterossexuais no âmbito dos regimes do
casamento e da adopção. Trata-se de situações objectivamente
desiguais que, precisamente na perspectiva da natureza e das
finalidades destes institutos, justificam um tratamento
diferenciado.
Ao instituto da adopção preside, acima de tudo, a finalidade de
prossecução do bem da criança. Por isso, não pode, desde logo,
encarar-se a possibilidade de adopção como um direito dos
adoptantes (de que seriam privadas de forma discriminatória as
pessoas de tendência homossexual). E o bem da criança exige que
entre adoptantes e adoptado se estabeleçam laços o mais possível
próximos dos que são próprios da filiação natural (todo o regime
jurídico da adopção reflecte este princípio). Ao contrário do que já
tem sido dito, não basta que entre eles se criem relações afectivas,
por mais fortes e consistentes que estas sejam. Exige-se que essas
relações afectivas correspondam às que são próprias da filiação
natural. Por isso se exige que entre adoptante e adoptado haja um
desnível etário (sem que isso implique obviamente qualquer
tratamento discriminatório) correspondente ao que se verificará
entre pais e filhos. Se entre o candidato a adoptante e o adoptando
não se verificar uma significativa diferença de idades, pode entre
eles existir uma profunda relação afectiva, mas não será certamente
a que é própria da filiação natural. Assim, também nunca a relação
entre um casal homossexual e um adoptado, por muito e respeitável
afecto que entre eles possa existir, será próxima da filiação
natural, pois esta supõe sempre a dualidade sexual.
Será difícil encontrar evidência mais objectiva do que esta: que a
filiação natural supõe sempre a dualidade sexual. Será difícil, por
isso, dizer que não estamos, neste âmbito, perante situações
objectivamente diferentes, que justificam um tratamento
diferenciado.
O
reconhecimento social e jurídico do instituto do casamento, e a
protecção estadual que daí decorre, ligam-se à sua função de
fundamento da família como célula básica da sociedade. É, desde
logo, a família que assegura a continuidade da sociedade, gerando
novas vidas. Só um homem e uma mulher, e não uniões de pessoas do
mesmo sexo, podem gerar novas vidas. Haverá poucas verdades tão
evidentes e objectivas como esta e, por isso, também neste aspecto,
será difícil dizer que não estamos perante situações objectivamente
diferentes, que justificam um tratamento diferenciado.
De qualquer modo, não estamos apenas perante uma evidência puramente
biológica. É também a família, fruto do amor de doação total e
comprometida entre um homem e uma mulher, que garante a educação e
crescimento harmoniosos das novas gerações. E fá-lo com a riqueza
que representa a dualidade sexual, a complementaridade das dimensões
masculina e feminina, sem o contributo de cada uma das quais a
formação da pessoa corre o risco da não ser completa e sadia. Dessa
riqueza beneficiam os filhos, mas também cada um dos cônjuges. A
própria vida social em geral se estrutura a partir dessa
complementaridade e dessa riqueza. Mesmo uma família sem filhos
merece, pois, reconhecimento e protecção enquanto célula básica da
sociedade (atributo que nunca poderá caber a uma união de pessoas do
mesmo sexo).
Por tudo isto, pois, não há qualquer discriminação motivada pela
“orientação sexual” quando se exige que o casamento se celebre entre
pessoas de sexo diferente. Trata-se, simplesmente, da natureza
intrínseca deste instituto, que nem sequer é criada pelo legislador,
sendo que este se limita a reconhecê-la.
Todas estas questões, onde se jogam princípios civilizacionais
socialmente estruturantes, deveriam ter sido objecto de uma ampla
discussão pública antes da aprovação da lei de revisão
constitucional, e não apenas agora. Certo é que muitos cidadãos, sem
culpa da sua parte, só agora se aperceberam do possível alcance das
modificações propostas. Vê-se que a nossa maturidade democrática tem
ainda muito que crescer...
Pedro Vaz Patto
Juiz de Direito
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