Diário de Notícias - 12 Jul 04

Política a fingir
João César das Neves 

É verdade que os políticos estão habituados a fingir. Muita da actividade partidária é um jogo de espelhos e a retórica parlamentar funciona frequentemente como cortina de fumo. Mas até para eles é exagerado o grau de disfarce e embuste que vários têm trazido aos debates em defesa do aborto.

Assistimos agora a uma campanha de políticos abortistas à porta de tribunais, fingindo confrontar graves atentados contra direitos fundamentais de pobres mulheres. Fingem, porque eles sabem muito bem que o número de mulheres presas em Portugal por aborto praticado é... zero.

As circunstâncias atenuantes, que eles invocam, são atendidas pela lei, que eles condenam. Assim, alardeiam aos quatro ventos gravíssimas acusações por coisa nenhuma. Proclamam como prioridade nacional a defesa de ninguém. Fazem imenso barulho num vazio. É o caso supremo de política a fingir.

Aliás, até terem criado esta polémica, nem sequer havia entre nós julgamentos por causa de abortos. Foi o seu interesse que, surpreendentemente, fez surgir por todo o lado os processos, que lhes dão repetidas oportunidades televisivas de fingir levar a cabo esta luta.

A inesperada coincidência faz mesmo suspeitar de dissimulação mais grave, a qual, por demasiado torpe, não deve sequer ser mencionada em conversa honrada.

Fingem também preocupar-se com as pessoas envolvidas no terrível drama do aborto, embora, de facto, apenas as usem como instrumento de agendas políticas.

As vidas concretas não contam na discussão de direitos abstractos.

Basta ver o contraste com o outro lado do debate.

Aqueles que defendem a vida e se lhes opõem nesta luta, criaram dezenas de organizações para apoiar grávidas em dificuldades, famílias com problemas, bebés abandonados. A preocupação é com as pessoas reais. Pelo seu lado, os promotores do aborto livre limitam-se a defender valores teóricos e liberdades abstractas. Altere-se a lei, mesmo que a dor permaneça.

Até no campo dos princípios há fingimento. Falam da defesa da escolha, da libertação da mulher e da prioridade à saúde. Mas o que está em causa é mais uma batalha no ataque secular à família, entre várias que preparam. Partidárias da feroz regulamentação em todos os campos económico-sociais, estas forças consideram que aqui deve vigorar a mais vasta libertinagem e total irresponsabilidade. Em nome do tabu sagrado do prazer sexual sem limites.

Fingem, acima de tudo, que o horrível sofrimento do aborto é apenas uma questão de saúde da mulher. Querem ignorar a esmagadora evidência científica que mostra, sem margem para dúvidas, que ali está já um bebé, um ser vivo com todas as potencialidades pessoais, na fase mais frágil da sua vida. A vergonhosa mutilação da questão ética, ensurdecendo a consciência com slogans, é a suprema desonestidade intelectual.

Politicamente, fingem esquecer a cultura nacional, a maioria sociológica das famílias, a consciência cristã. Esquecem até que houve um referendo nacional sobre o assunto. Desprezam-no por causa da abstenção, enquanto argumentam com a sua vitória retumbante em eleições europeias, que teve abstenção da mesma ordem de grandeza.

Toda a questão, imposta à sociedade pelo seu frenesim propagandístico, vive do engano e dissimulação. A tolice é tal que até teria graça. Se não estivesse em causa o direito sagrado à vida do embrião e o sofrimento de muitos, devassado por interesses partidários.

naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

WB00789_.gif (161 bytes)