Público - 7 Jul 04
A Escola e o Hino
Por MANUEL J. ANTUNES
A propósito da intenção do governo de instituir exames nacionais
para os alunos no último ano do ensino básico, intenção que
desencadeou as reacções das mais diversas, ouvi o responsável máximo
de uma associação de pais, em tom depreciativo, perguntar, mais ou
menos nestes termos, "e porque não também o hino nacional e a
formatura à entrada da escola?"
Não sei se aquele senhor é representativo do pensar da maioria dos
pais portugueses. Sinceramente espero que não. Certamente não me
representa a mim. Escrevo estas linhas como professor, marido de uma
professora mas, sobretudo, como pai de três filhos, um ainda na
escola. Vi estes meus três filhos passar por várias reformas
curriculares. Inclusivamente, tive a experiência de dois deles terem
frequentado parte do ensino oficial num país estrangeiro, pelo que
penso estar em condições de fazer comparações directas.
Tenho assistido, com grande desgosto e algum grau de desespero, a
uma "liberalização" cada vez maior do ensino que, a meu ver, nada
tem contribuído para melhorar a formação dos nossos jovens. Com
apreensão, tenho visto desaparecer do currículo escolar disciplinas
orientadas para a formação cívica, moral e religiosa por cuja falta
tenho a certeza viremos a pagar muitíssimo caro no futuro.
Sou do tempo em que a actividade escolar era mesmo começada a cantar
o Hino Nacional e em que a entrada para a sala de aulas era feita em
formação ordenada. Estes dois tipos de prática são para mim
simbólicos apenas porque representavam a disciplina e o respeito
pelos valores sociais que hoje tanta falta fazem nas nossas escolas,
e que é também, em minha opinião, uma das principais causas do nosso
atraso cultural. Penso que a nova ordem democrática, que levou ao
abandono destas e de outras práticas, não serve afinal a democracia
que se baseia em cidadãos bem formados, conscientes dos seus deveres
cívicos.
Nalguns países europeus muito mais avançados do que o nosso,
exemplos de grandes democracias, continuam a ser prática corrente. O
ensino britânico ainda hoje não dispensa o uniforme escolar que não
é sinónimo de falta de liberdade mas, ao contrário, fomenta a
igualdade. Os nossos melhores colégios privados também fazem uso
dele. Por contraste, sabe-se bem como são desprezados pelos colegas
os meninos que nas nossas escolas públicas não usam roupa de marca,
que se tornou um dos principais símbolos do "ser bem".
Independentemente destas considerações, faz-me aflição ver que a
maior parte dos nossos jovens não sabe a letra completa do nosso
Hino Nacional, facto aliás bem patente quando olhamos pela televisão
para o balbuciar de alguns dos nossos jogadores de futebol durante
os jogos da selecção, ao contrário daquilo que vemos na maior parte
dos nossos adversários. Há dias, quando o Euro já se iniciara, uma
das nossas televisões fez um inquérito de rua e não conseguiu
encontrar um só cidadão (?) que soubesse a letra completa da
"Portuguesa". Tenho quase a certeza de que a maior parte sabia os
nomes de todas as personagens e dos actores das muitas telenovelas
que ela passa diariamente.
Em qualquer país civilizado, o Hino Nacional, tal como a bandeira, é
um símbolo máximo da cidadania. No nosso caso, a sua ausência
simboliza também a nossa falta de cultura cívica. Os nossos jovens
têm, desde pequeninos, de aprender que a liberdade não significa
apenas fazer aquilo que a cada um apetece. O País, a sociedade, têm
que estar acima dos valores individuais. Nos Estados Unidos, na
Inglaterra e mesmo na Alemanha o culto pelos símbolos nacionais (não
nacionalistas) é demonstrado pela bandeira exibida na porta
principal da grande maioria das casas. Até na vizinha Espanha esse
culto é bem visível.
Mas o nosso sistema escolar assimilou o culto do facilitismo, bem
caracterizado pela eliminação de provas de avaliação (exames)
periódicas, de carácter nacional, que, ao contrário do que defendem
os pedagogos da "nouvelle vague", é causa de (e não solução para)
graves assimetrias. O mesmo pode dizer-se da quase exigência de
passar os meninos para o ano seguinte para que as taxas de sucesso
sejam (artificialmente) melhoradas. Abandonou-se, ostensivamente, a
cultura da excelência em favor da mediania, isto é, optou-se pelo
nivelamento por baixo. Fazem falta os quadros de honra e os prémios
anuais. Enquanto outros se orgulham das suas elites, nós
autoconfortamo-nos com o nivelamento cinzento pseudo-democrático. A
autoridade deu o lugar ao deixa andar que é tido como o símbolo da
afirmação da identidade pessoal e que, não infrequentemente,
degenera na indisciplina que, infelizmente, nos parece estar no
sangue.
Não existe no nosso curriculum escolar nenhuma disciplina orientada
especialmente para o ensino dos valores cívicos, sociais e políticos
e a maior parte dos nossos jovens demonstra uma profunda ignorância
destes aspectos fundamentais da cultura de cidadania. Não pretendo
fazer aqui a apologia da re-introdução do Hino nas escolas, mas a
declaração feita por aquele responsável da organização de pais é
demonstradora do muito que temos a percorrer na formação do nosso
povo. E é aqui que temos que apostar se quisermos vencer a batalha
do desenvolvimento. A União Europeia foi agora enriquecida com a
entrada de dez novos países do Leste Europeu. Independentemente do
seu passado político recente, ou até por isso, é sabido que as suas
populações têm um índice cultural e de instrução geralmente bastante
mais elevadas que o nosso, o que apenas pode contribuir para que nos
afundemos cada vez mais na nossa posição já desprivilegiada no
contexto do grupo das nações.
A restauração, desde o ensino básico, de uma escola cada vez mais
consciente do seu papel fundamental na formação cívica dos cidadãos,
tanto quanto no ensino das ciências ou das letras, é a reforma de
que mais urgentemente necessitamos. Conhecedor do ambiente, sempre
fui bastante critico da atitude dos professores que há muito parecem
querer demitir-se desta responsabilidade. Ouvir um pai falar daquele
modo fez-me reconhecer o meu erro. Nós, os pais, somos, afinal, os
principais responsáveis. Não podemos transferir para os professores
as nossas obrigações específicas.
E por isso, temos que nos reeducar também a nós próprios.
Professor Catedrático da Universidade de Coimbra
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