Há mais de trinta anos que o conteúdo do discurso
político fala quase exclusivamente em direitos,
olvidando os deveres
Em breve iremos assistir, no nosso país, a um
conflito explosivo entre o Governo e uma parte da
sociedade. De um lado a necessidade do Governo
aprovar um orçamento de austeridade que contrarie o
crescente défice público - aumentando provavelmente
os impostos e reduzindo a despesa pública -, o que
irá obrigar a novos sacrifícios. Do outro lado temos
uma parte da população que, nos últimos anos, se
habituou a consumir facilmente, vivendo na ilusão de
que a riqueza não provém do esforço e do trabalho.
Este conflito não surge por acaso, uma vez que se
criou a fantasia de que o bem-estar e a felicidade,
em lugar de serem procurados pelo indivíduo,
deveriam ser reivindicados ao Estado; tratando-se de
um direito. Dito de outro modo, a sociedade
infantilizou-se e o Estado assumiu um papel
paternalista de quem tudo se espera.
Há mais de trinta anos que o conteúdo do discurso
político fala quase exclusivamente em direitos,
olvidando os deveres. Ao longo do tempo criou-se, no
inconsciente colectivo, a ideia errada de que
qualquer frustração do indivíduo se devia a um
direito que ainda não estava conquistado, e a
solução libertadora residia em reivindicá-lo.
Confunde-se, pois, direitos com aspirações. E, mesmo
que sejam dadas todas as oportunidades, se
porventura houver alguém que não alcança uma
aspiração, isso raramente é atribuído a um fracasso
pessoal, mas a uma discriminação, mesmo que muitas
vezes nem sequer tenha havido qualquer esforço para
se obter sucesso.
O profundo desequilíbrio que se criou entre direitos
e deveres é uma das causas do nosso atraso e da
falta de competitividade. Porém, raramente se ouve
no discurso político o elogio do dever: o dever de
valorizar o trabalho, ser justo, solidário,
cumpridor, honesto, responsável, etc. Estas são
virtudes associadas a uma visão do mundo antiquada,
ultrapassada e opressora do homem. Mas, ao contrário
do que se pensa, estes são os alicerces de uma
sociedade madura, responsável e que se projecta não
apenas no presente, mas também no futuro.
O paternalismo patológico, por parte do Estado, é
inimigo da solidariedade, tornando as pessoas
excessivamente autocentradas, preocupando-se mais em
exigir o que merecem do que com o que podem oferecer
aos outros. Somos confrontados com uma camada social
cada vez mais infantilizada, dependente de subsídios
do Estado, incapaz de se bastar a si própria e de
criar riqueza que possa ser partilhada com os
outros. Em vez de se incitar a ambição positiva e
autonomia, fomenta-se a miséria e a regressão a um
estado de dependência.
A nossa sociedade não tem vindo a ser preparada para
os sacrifícios que a presente crise económica irá
obrigar. Pelo contrário, foi iludida com um
consumismo desenfreado, sustentado por um crédito
abundante que agora acabou. Com isto disseminou-se
uma síndrome de baixa tolerância à frustração,
surgindo a percepção de que tudo se poderia alcançar
de forma fácil e instantânea.
Diante da nossa actual realidade económica e social,
é fundamental que haja coragem política para se
explicar ao povo que a riqueza, a justiça e o
progresso não podem ser alcançados apenas com o
esforço de alguns. Todos devem participar nesse
projecto; todos temos a obrigação e o dever de lutar
para que Portugal se torne num país mais rico e
desenvolvido. Não obstante este facto, alguém terá
de reverter esta hipnose colectiva. Alguém terá de
explicar que tudo foi uma fantasia; tudo foi um
engano. Chegou a altura de abandonar o discurso,
alicerçado na esperança pueril, de que tudo irá
melhorar. É tempo de fazer sacrifícios. Mas, se a
sociedade foi infantilizada, isso não se aceita
facilmente sem que haja uma grande birra. Médico
psiquiatra