Ça ira!, manifesto da revolução matrimonial
portuguesa
Gonçalo Portocarrero de Almada
Por que razão se há-de impor dogmaticamente que o
casamento se estabelece entre duas pessoas?! Por que
não entre três?
O país comoveu-se quando a menina Jéssica declarou
publicamente amar a menina Nádia e, por isso, com
ela querer casar. E indignou-se quando um qualquer
mangas-de-alpaca se opôs a tão nobre propósito, com
o retrógrado pretexto de que o Código Civil não
apadrinha um tão extremoso ajuntamento. Vai daí as
duas meninas, em nome da sua arrebatadora paixão,
decidem recorrer para os tribunais, que, em última
instância, negam o direito ao pretendido casamento.
O que lhes valeu foi o Governo, que, comovido com o
enternecedor folhetim e zangado com os malvados
juízes, se apressou a fazer justiça pelas suas
próprias mãos, autorizando o casamento entre pessoas
do mesmo sexo, a que se seguiu a posterior aprovação
parlamentar. Alegre-se o país com o happy end que
pôs termo a este emocionante folhetim, digno de
Bollywood, mas ninguém se iluda, porque o feliz
desfecho deste rocambolesco episódio mediático mais
não é do que o preâmbulo de um novo regime do
casamento civil em Portugal.
A verdade é que as duas heroínas do amor,
protomártires do casamento dito homossexual, são um
bocado antiquadas, pois a sociedade pós-moderna
deste sorridente século XXI conhece mais arrojadas
expressões de acasalamento. Por exemplo, essa "cena"
de que o casamento é a dois já deu o que tinha a dar
e, mesmo que se admita como relíquia de outras eras,
não pode ser tida, numa sociedade multicultural e
globalizada, como a única modalidade matrimonial
reconhecida pela lei civil. Com efeito, por que
razão se há-de impor dogmaticamente que o casamento
se estabelece sempre entre duas pessoas?! Porque não
entre três, por exemplo, que é a conta que Deus
fez?!
Se a menina Nádia e a menina Jéssica têm direito a
que o seu romântico amor seja juridicamente
considerado matrimonial, porque razão o menino
Ibrahim, magrebino que joga no Futebol Clube da
Reboleira, não pode casar simultaneamente com as
suas amadas Sheila e Cynthia? Afinal, onde é que
está escrito que o casamento é monogâmico? No Código
Civil, é certo, mas não era também nesse vetusto
pergaminho que se prescrevia a não menos odiosa
exigência da disparidade de sexo, que tanto afligiu
as meninas Jéssica e Nádia?!
Se já se admite a união "matrimonial" de duas
mulheres ou de dois homens, admita-se também o
casamento de vários cônjuges! Se não se aceita
apenas o matrimónio monogâmico e heterossexual,
reconheça-se então, pela mesma razão, o casamento
poligâmico e homossexual! Se se deu às meninas Nádia
e Jéssica o direito ao seu recíproco casamento, não
se negue ao menino Ibrahim o direito ao seu harém, a
bem da liberdade de nós todos, dele e também das
suas muito queridas Cynthia e Sheila que, em tempo
de crise, estão pelos ajustes de partilhar o mesmo
marido.
Diga-se ainda, por último, que a exigência legal de
que o matrimónio se estabeleça entre duas pessoas é
contrária aos mais elementares direitos dos animais
não-humanos. A definição do casamento como união de
um homem com uma mulher é tão arcaica quanto o
matrimónio para a procriação: o casamento moderno
não tem nada que ver com a família ou com a geração,
porque foi elevado à sublime condição do mais
libérrimo amor. Ora o amor não se afirma apenas
entre os humanos, como muito bem sabem quantos
estimam os animais mais do que os seus semelhantes
que, salvo melhor opinião, não são as ditas bestas.
Assim sendo, espera-se agora que a D. Arlete, que,
desde que faleceu o marido e os filhos abalaram para
parte incerta, se entregou de alma e coração à sua
gata Britney, exija que o Estado português lhe
permita institucionalizar esta sua amantíssima
relação com o seu bichano, bem mais fiel do que o
seu defunto ente querido, e muito mais carinhoso do
que a sua ingrata prole. É provável que o zeloso
funcionário de turno não queira abençoar esta
revolucionária união e que, mais uma vez, os
tribunais confirmem a recusa, em nome de um qualquer
alfarrábio ultramontano. Mas se a D. Arlete, à
imagem e semelhança do amoroso casalinho das meninas
Jéssica e Nádia, perseverar no seu revolucionário
empenho, é certo e sabido que tem garantida a
vitória nos corações de todos os portugueses, sejam
eles gatos ou não. E, mesmo que os tribunais não lhe
dêem a razão, terá decerto direito ao prime time dos
noticiários de todas as televisões e, depois, à
bênção nupcial do Governo e do Parlamento. (Nota:
todos os nomes são fictícios, menos o da gata, à
qual se pede desculpa pela inconfidência).
Licenciado em Direito e doutorado em Filosofia.
Vice-presidente da Confederação Nacional das
Associações de Família (CNAF)